segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O Hierofante (Ou carta V)


“Havia dor em seu coração. A perda de alguém que amava mais do que a si própria a fez usar caminhos escusos que não teria escolhido se tivesse com a consciência em paz. Pegou a barra de metal, a faca e diante da fogueira fez um corte profundo em sua mão – segurou o metal o mais firme que conseguiu e deixou que caísse algumas gotas na fogueira, que escorriam pela barra antes que fossem consumidas nas chamas. Entoou cânticos há muito esquecidos e ali vendeu parte de si mesma, de sua alma. Vingança, um dos mais antigos sentimentos da humanidade, o qual nem mesmo os deuses conseguem evitar, estava ali ao alcance de suas mãos e mesmo que não estivesse, como conhecedora de grandes mistérios que era, a velha bruxa lançaria mão do que fosse necessário para assim conseguir sua vitória. A julgar pela mudança de cores no fogo bruxuleante, que variou entre matizes e nuances, seu desejo seria atendido. A magia praticada pela velha previa o mal ao próximo, perdão não era o sentimento que ela iria encontrar para os algozes, mas não percebeu que antes de perdoá-los deveria perdoar a si mesma e assim traçou sua queda no grande abismo que devora todas as almas – o sentimento nefasto que cria sombras que nos puxam para próximo das trevas que criamos em nossos corações e obriga nossa alma a se envolver com elas. Devemos sempre temer por aquilo que desejamos, pois pode-se tornar realidade e a bruxa, infelizmente, desejou olhar para o abismo.

Já a menina vestida em roupas como se fosse uma pequena boneca, servia a todos os homens que assim desejassem. Não por vontade própria, já que era jovem demais para desejar relações sexuais com os mais variados tipos de pessoas, mas o dinheiro que a pequena conseguia para seu dono (e não há uma palavra que defina melhor do que essa, dono) não era facilmente conquistado pelas mulheres mais velhas. Seu rosto sempre carregado de maquiagem branca, com leves toques avermelhados na bochecha, e seus olhos com uma profunda sombra negra denunciavam a completa destruição de sua inocência, mesmo que seus grandes olhos sempre amedrontados lhe conferissem a sensação de ser uma presa para as feras que buscavam sexo independente do quanto gastariam para isso. Sem saber exatamente quem era, usando sempre o vestido curto e meias calças – ambos na cor branca da inocência, adquiriu um gosto pelos atos sexuais que era obrigada a praticar, como se aquela fosse a única forma de encontrar diversão e carinho em um mundo escuro e distorcido que lhe arrancou a vivência de uma criança que deveria estar brincando com bonecas e sendo preparada para o casamento. A francesinha de séculos atrás foi servir a um homem em uma praia, e durante o ato nada pode contra as mãos que lhe subiram de seus seios em formação na direção de sua garganta, não tinha forças para sequer tentar evitar o que ali era inevitável. Sufocou-se ainda sentindo o pênis do homem dentro dela. Foi atirada ao mar e não se soube o que realmente havia acontecido.

Houve um casal também, que por força do destino e das pessoas que viviam ao redor deles, foram obrigados a fugir para viverem o seu grande e verdadeiro amor. Mas essa é uma história que também não termina bem. Correndo por entre árvores em um caminho de terra e pedra, a mulher tentava desesperadamente encontrar o homem – sentia no fundo do seu coração que aquele desencontro na noite da fuga iria gerar grande infortúnio, mas se fosse rápida o suficiente poderia encontrá-lo e então partir. Os ardis de sua própria família a levaram ao atraso e ao desencontro que, quanto mais corria, mais tinha certeza que seria fatal. Sentiu seu próprio coração parar ao ouvir um estampido alto, que cortou a noite e fez com que morcegos e corujas voassem para longe das árvores onde estavam. Sentiu em seu próprio peito a dor do que estava acontecendo e quase desmaiou. Mas era forte, forte demais para uma mulher de sua época (como seu pai lhe disse várias vezes). Sujando de barro as barras de seu vestido negro, que fora cuidadosamente escolhido pela sua mãe que lhe puxou os fios do espartilho com pesar no rosto, mantendo eles seguros mas frouxos. Sua mãe, talvez no último momento tenha se arrependido das próprias ações, mas mesmo o sussurro no ouvido da filha (‘Corra’) não era suficiente para evitar a desgraça que se seguia. Encontrou um grupo de homens que serviam à sua família e abrindo espaço entre eles jogou-se sobre o corpo de seu amado. Em desespero gritou e chorou. Quando foi encontrada pelo seu pai, seus cabelos cheios de cachos estavam sujos de sangue que saiu pela boca do homem com quem desejava se casar. As palavras do homem terminaram por retalhar seu coração. ‘Isso acontece quando não se ouve o próprio pai’."

***

- Por que me contou apenas uma parte de cada história e não todo o conjunto?

- O conjunto não acrescenta nada, essas partes são aquilo que definem algumas situações atuais.

- Definem?

- Autoconhecimento é o que você busca não é?

- Sim.

Fez-se alguns momentos de silêncio enquanto o jovem olhava para o nada, pensativo.

- Há alguma forma de mudar essas situações? As coisas que aconteceram?

- Sim, existe.

- Irei fazê-lo.

- A partir daqui já não posso ajudá-lo.

- Gratidão mestre.

O homem de rosto inflexível se virou e então suas vestes que eram simples, tornaram-se ornamentos de alguém de alta posição hierárquica, e a julgar pelos símbolos, possivelmente pertencia a alguma ordem, alguma igreja.

Quando ganhou certa distância, virou-se para o jovem e fez um sinal com mão como se abençoasse: dois dedos para cima, dois dedos para baixo e o polegar firme ao centro da palma da mão.

E se despediu, por agora.