O Louco se joga porque há um precipício ou há um precipício por que o Louco se joga?
- Vamos pular bebê?
- De novo?
- Sempre.
Estimado Livro do Espelho,
Me lançarei mais uma vez por terras desconhecidas, em busca daquilo que mais preciso e que não se resume a uma pessoa ou desejo ou qualquer – e tudo – aquilo que é material. O início de qualquer viagem me faz sentir os joelhos tremerem como quando era uma criança à espera da primeira aula.
Mas com esse livro, com essa lanterna, com essas pílulas em meu bolso, talvez seja mais fácil e mais calmo. Ou estou apenas tentando me enganar, mas tenho certeza que será no mínimo divertido.
Quando olho para trás percebo que muitas situações se configuraram para que eu pudesse estar novamente à beira do abismo, ou olhando para um grande espelho que posso atravessar.
Vamos correr atrás do coelho, vamos nos jogar em um buraco sem fim e vamos encontrar um novo mundo. Vamos beber da pequena garrafa, vamos comer do bolo, vamos fazer uma lagoa de lágrimas, vamos tomar chá com o Chapeleiro e conhecer o gato Risonho e quem sabe fumar narguilé com a Lagarta azul e tentar não perder a cabeça com a Rainha de Copas.
Avante e sem conhecer o caminho, com uma mochila cheia de histórias, com todas as cicatrizes do coração e um olhar determinado.
E uma lanterna para iluminar o caminho, e um livro para escrever tudo o que conhecerei.
Ou o poço era profundo demais, ou ela caía muito devagar, pois teve tempo de sobra durante a queda para olhar em volta e perguntar-se o que iria acontecer em seguida. Primeiro, tentou olhar para baixo, para ver aonde estava indo, mas estava escuro demais para ver qualquer coisa: então, olhou para as paredes do poço e notou que estavam cheias de armários e prateleiras: aqui e ali viu mapas e quadros pendurados. Enquanto passava, pegou de uma das prateleiras um pote: tinha o rótulo “GELÉIA DE LARANJA”, mas para seu desapontamento estava vazio: não quis jogar fora o pote, com medo de acertar mortalmente alguém lá embaixo, então, esforçou-se por colocá-lo de volta em uma das prateleiras enquanto passava.
“Bom”, pensou Alice, “depois de um tombo desses, não vou achar nada demais cair de uma escada! Todos lá em casa vão pensar que fiquei muito corajosa! Não lhes vou contar nada, mesmo se cair do telhado!” (O que era bem possível que acontecesse.)
Caindo, caindo, caindo. Esta queda não acabaria nunca?
Eu estou ficando cansado e preciso de alguém em quem confiar
Me deparei com uma árvore caída
Eu senti os galhos dela olhando para mim
É este o lugar que costumávamos amar?
É este o lugar com que tenho sonhado?
Oh! Coisa simples, aonde você foi?
Eu estou ficando velho e preciso de algo em que confiar
E se você tiver um minuto por que nós não vamos
Falar sobre isso num lugar que só nós conhecemos?
Isso poderia ser o final de tudo
Então por que nós não vamos
Para algum lugar que só nós conhecemos?
Algum lugar que só nós conhecemos
Oh! Coisa simples, aonde você foi?
Eu estou ficando velho e preciso de alguém em quem confiar
Então me diga quando você vai me deixar entrar
Eu estou ficando cansado e preciso de algum lugar para começar
E se você tiver um minuto, por que nós não vamos
Falar sobre isso num lugar que só nós conhecemos?
Porque isso poderia ser o final de tudo
Então por que nós não vamos
Para algum lugar que só nós conhecemos?
Algum lugar que só nós conhecemos
Pegou o candeeiro da bolsa para iluminar a caverna onde
havia entrado e o acendeu com cuidado. Pelas paredes desenhos que pareciam ser
feitos por uma criança – e cobriam toda a extensão da caverna. Pareciam
representar momentos de duas pessoas, sempre nas cores azul e vermelha e em
alguns momentos da história contada podia-se ver outras figuras desenhadas com
uma cor preta e estas lembravam sombras, fosse pela posição em que estavam,
seja pela forma como interagiam com os dois. De maneira geral pareciam felizes
um com o outro, sempre juntos e em alguns momentos de mãos dadas.
A luz que saía do candeeiro e iluminava a parede mantinha um
foco sempre para frente, mas sem que o homem se virasse, a luz foi lentamente
deslocando-se para esquerda e focalizou na parede que estava atrás dele. E os
desenhos ali já não eram tão felizes, pareciam tentar transmitir momentos de
solidão dos dois, afastamento, lágrimas.
A luz continuou sua evolução para a esquerda, até que
iluminou um garoto de pele branca e cabelos lisos.
- Oi – ele disse.
***
- Então esses desenhos são sobre vocês dois e o que viveram
aqui.
- Sim. – Disse com uma certa mágoa na voz.
- E onde ele está agora?
- Aqui – Apontou para o coração.
Caminharam para dentro da caverna até encontrar uma pedra
que lembrava um banco e sentaram-se.
- Sinto falta dele.
- Ele deve sentir a sua falta também.
- Acho que não, ele decidiu sumir.
- Talvez ele precisasse. – E o garoto fez sinal que sim e
não disse nada. – Vocês brigaram?
- Mais ou menos.
- Por que não foi atrás dele?
- Eu estava ocupado demais brincando.
Olhou ao redor e não viu nenhum objeto que pudesse ser usado
como brinquedo.
- Brincando com o que?
- Com as sombras.
Seguiu-se um longo silêncio.
- Quer que te ajude a encontra-lo?
- Pra isso vou ter que sair daqui.
- Então vamos sair, eu te levo.
- Ele me disse isso também.
- E por que você não foi?
- Por que quis ficar aqui, é o que conheço, é o que construí
para mim. Não sei o que há lá fora.
- Por isso ele foi embora? Por você não querer ir com ele?
- Não.
- Foi por qual motivo então?
- Ele ficou aqui tempo demais, esperou tempo demais...
- E por que ele ficou aqui com você?
- Eu dizia que queria sair da caverna...
- Mas você não queria?
- Não.
- E ele acreditou em você?
- Sim.
- E quando ele percebeu que você não tinha a intenção de
sair?
- Todas as vezes que eu deixava as coisas acontecerem, todas
as vezes que ele me pegava pela mão... eu corria.
- Para onde?
- Para as sombras, ficava brincando com elas.
- E ele?
- Ele chamava meu nome no meio do escuro, me procurava
tateando por aí.
- E você não foi ao encontro dele quando ele te chamava?
- Não.
- Por que?
- Tenho limitações, restrições... e as sombras estavam
comigo.
- As sombras te faziam feliz?
- Não. Mas era o que eu conhecia.
- E você não preferia conhecer ele?
- Não sei dizer... mas ele foi se mostrando aos poucos e
mesmo sem saber fui conhecendo.
- E ele foi te conhecendo também?
- Sim.
- Por que ficar com as sombras ao invés dele então?
- Ele queria muitas coisas e eu tive medo.
- Que coisas?
- Ir lá para fora.
- E valeu a pena?
- Ter conhecido ele?
- Ter preferido as sombras?
O garoto se levantou e olhou ao redor, enquanto o foco da
lanterna fez uma nova evolução, mostrando as duas paredes. As alegrias, as
brincadeiras, as besteiras, os abraços, os toques, a presença; as lágrimas, as
mágoas, o abandono, as dores.
- Não sei dizer.
- Você sente a falta dele?
- Muito.
- O suficiente?
- Sim.
Então o homem se levantou.
- Te levo a ele.
- Não posso.
- Por qual motivo?
- Vai ser diferente de tudo o que eu conheço e não sei o que
vou fazer.
- Diferente de que forma?
- Ele me ama.
Essa frase parecia causar grande confusão ao garoto.
- E você?
- Não sei.
- Não sabe se o ama?
- Não sei o que significa amor.
O homem sorriu bondoso, passou a mão na cabeça do garoto.
- Amar significa muitas coisas, inclusive se doar. Uma vez,
em um deserto distante daqui, eu conheci um garoto de cabelos loiros e ele
também não sabia o que significava amar. Deixou sua rosa para trás e viajou por
muitos lugares para tentar descobrir o que significava e encontrou uma raposa
que o ensinou coisas muito importantes sobre isso.
- O que ela ensinou?
- Que nós temos responsabilidade com aqueles que nos amam.
- Mas eu não quero, eu tenho minhas limitações e minhas
restrições. Outras pessoas passaram por aqui, elas me empurraram para dentro da
caverna e fecharam a entrada. Não posso sair.
- A saída está aberta, eu entrei por lá.
- Mas não posso deixar minhas sombras para trás, elas são
importantes. Me ocupam durante todo o dia e às vezes me afagam se oferecendo a
mim.
- Então você está bem sem ele?
- Não. Quero ele aqui comigo.
- E por que ele não está aqui?
- Por que aqui não é o lugar dele. O lugar dele é lá fora embaixo
do luar e eu sei que nada irá impedi-lo de ficar no lugar que é dele.
- E aqui é o seu lugar?
- Não sei. Deve ser. Fiz daqui o meu lugar. – Escorreu uma
lágrima.
- O que você realmente quer?
- Que ele me tire daqui.
- Vamos tentar uma coisa?
- Não sei. Não sei se posso confiar em você.
O homem ergueu o candeeiro na altura do próprio rosto.
- Prometo que você terá o que precisa. Mas não prometo que
conseguirá o que deseja.
O garoto olhou ao redor, para todas as sombras que se
formavam em volta de si e com um sussurro elas diziam o quanto ele deveria
ficar ali, o quanto eles tiveram momentos especiais e o quanto elas estavam com
ele e se embrenhavam nele e eram ele. O candeeiro emitiu uma luz forte que as
dissipou instantaneamente – afinal, elas tinham a importância que o menino lhes
dava – olhou para o homem e com uma expressão de medo, quase terror.
- Depende de você.
- E se tudo der errado?
- Te trago de volta.
- Promete?
- Sim.
***
Tirou as vendas dos olhos e encontrou seu maior terror: o
mundo do lado de fora da caverna. A floresta ao redor e todos os barulhos e
tudo aquilo que ele não conhecia e que poderia saltar para fora da mata e
pegá-lo. Virou-se para abraçar as pernas do homem e quando olhou para o rosto
dele e pronto para pedir para retornar, viu o céu estrelado e a lua cheia que
brilhava com força. Soltou devagar o homem e ficou encantado com tantos pontos
brilhantes em um véu negro que se estendia além dos limites, das restrições. O
infinito era realmente imenso, assim como a escuridão também é, mas ao
contrário desta o céu não prende e não sufoca. Era lindo e maravilhoso. Deu as
costas para o homem enquanto olhava para a lua.
- Oi – Disse o outro garoto, que segurava o candeeiro e
estava ali no mesmo lugar que o homem.