terça-feira, 31 de maio de 2016

O Imperador (Ou Carta IV)

Imperador
Primeiro de seu Nome
O Grande Deus Sol
Conquistador de Reinos
Criador de Exércitos
Estrategista Supremo


Acordou às 5 da manhã. Tomou um banho rápido, café da manhã para ela e para a criança que iria para a escola dali a 2 horas. Pegou a filha menor, enrolou em um pano que passava pelo seu pescoço e mantinha a pequena segura, sentada ou deitada, próxima de seu peito. Cesta de salgados feitos no dia anterior, outra um pouco menor para os doces – colocava amor nos alimentos que preparava, pois conforme sua mãe ensinou, às vezes uma pessoa só precisa de algo feito com amor para começar o dia bem.

Foi para o ponto de ônibus, como todos os dias. Pegaria dois e chegaria à estação de metrô, com sorte venderia algo ainda no ônibus. Já no trem a situação seria um pouco diferente, não era permitido comercializar nada em seus vagões, mas uns conhecidos sempre compravam algo e assim outras pessoas que saíram apressadas de casa a iriam ver e pediriam também. Grande parte do que fizera para vender se esvaziava nesse trajeto e o restante venderia no centro. Todos os dias os mesmos caminhos.

Exceto naquele dia, em especial. Veio outro motorista, não o que fazia a linha habitualmente. Pediu, como sempre, para que abrisse as portas traseiras, já que teria dificuldade de passar com a criança pela catraca.

- Não posso abrir não senhora.

- Como assim não pode abrir?

- Não posso... – e começou a sair com o ônibus.

- ELA VAI PAGAR – Alguém já acostumado com sua presença no ônibus naquele horário gritou.

- Ah sim... – e abriu a porta.

Subiu, constrangida. Embora se sentisse mal, tinha que vender seus salgados e assim o fez, afinal, não havia nada de novo em um país racista.

Mas naquele dia havia sim.

Timidamente um homem se aproximou.

- Com licença... posso conversar com você?

- Sim claro. - disse com seu sorriso inabalável no rosto.

- Sou fotógrafo... trabalho com fotos de empoderamento e você... bem... você é linda com a criança nos braços.

- Obrigada. – Outro sorriso, novamente gentil.

- Poderia tirar uma foto sua?

- Sim, sem dúvidas. – e se preparou para a foto.

Sem saber, que ali, em um assento de ônibus, com duas cestas e uma criança no colo e como tantas outras mães negras que saem pela manhã para conquistar o sustento para seus filhos e ganhar a vida honestamente, invocava figura indomável de um Imperador.

O assento? Seu trono.

Suas crianças? Seu reino.

Suas cestas? Seu cetro

Seu cabelo crespo? Sua coroa.

E nunca, motorista algum, iria fazer com que ela se sentisse menor. Pois não era.
Sua alma é imensa, maior que este país.



*Conto baseado em fatos reais.

terça-feira, 24 de maio de 2016

A Justiça, Ou Carta VIII



Ergueu-se do chão, embainhou a espada. Logo mais uma luta se aproximaria e estava cansado. Passou os dedos no bigode espesso, ergueu os olhos para a imponente estátua diante de si. Diziam que protege a todos que assim o merecem e diante desses anos de guerras, pedir por mais uma proteção poderia de alguma forma pesar demais. Com olhos de uma criança inocente e meio sorriso no rosto, disse: 

- Uma vez mais, Grande Dama. Abençoe este guerreiro para o que tenha que acontecer. 

Vestiu-se com armadura, elmo e pegou o escudo. Montou seu cavalo e foi para o campo de batalha.

* * *

Entregou seus sentimentos sem medo, talvez uma atitude um pouco provocada pelo Louco, com a força de um Carro. Mas o fez. E agora pedia clemência e suspirava por uma luz no fim do túnel que demonstrasse a ela que não tinha feito errado. Acendeu um cigarro, depois outro e outro. No quarto, o celular vibrou. Mensagem da operadora. Assim, iria para a quinta vez que usaria o isqueiro. Estava particularmente bonita naquele dia, um vestido que ia um pouco acima do joelho, vermelho é claro, meias finas pretas, bota de cano curto e um lenço que por vezes funcionava como xale. E ainda não sabia o que diria, se diria e por onde começaria. Ele entrou apressado, com certa urgência no andar, talvez por estar atrasado. Sentou-se a mesa e a olhou no fundo de seus olhos castanhos. 

* * *
Lutou com todas as forças pelo cargo, fez tudo o que podia e algumas coisas que não podia. Deixou de lado sua vida social (algo que pensava não ser mais necessário desde o término da faculdade), terminou relacionamentos, não visitou os parentes por algum tempo. Dedicação total. Mas ainda sentia que não teria como alcançar o que desejava. Motivos? Nenhum aparente, talvez fosse a política e o jogo dos poderes dentro da empresa. Pensou em vários momentos em desistir. Talvez assim pudesse recuperar o tempo perdido dentro do escritório – muito embora, não se sentisse confortável em dizer que o tempo foi, de fato, perdido. Fez algumas amizades, ampliou a quantidade e a qualidade de seus contatos e isso por si só já deveria ter valido a pena. Talvez.

* * *

- E daí? 

- Bem... o guerreiro morreu. Era velho demais para mais uma batalha e assim, por mais que tentasse não poderia sobreviver. 

- O que há de justo nisso? 

- Ergueram uma estátua dele na praça principal da cidade e todos contavam suas façanhas e as crianças fingiam ser o homem enquanto brincavam. A Justiça pesa todas as ações, pesa tudo o que é favorável e o que não é, e oferece aquilo que lhe é por direito. 

- Sei... e a mulher? 

- O namoro acabou. Mas não que fosse sua própria culpa, mas como permanecer em algo que foi negligenciado pelo seu parceiro? Em um primeiro momento, a situação se configura ruim para ela, mas quem estava colhendo os frutos mal plantados era ele. A Justiça pesa todas as ações, pesa tudo o que é favorável e o que não é, e oferece aquilo que lhe é por direito. 

- Hum... é... meio estranho. 

- O homem, ele não conseguiu o cargo por mais que tivesse se esforçado. Mas foi chamado por outro setor, onde cresceu muito mais se valendo dos conhecimentos adquiridos anteriormente. A Justiça pesa todas as ações, pesa tudo o que é favorável e o que não é, e oferece aquilo que lhe é por direito. 

- Não entendi, eles parecem que se deram mal, mesmo tentando fazer o certo. 

- Você entenderá... - Ofereceu mais uma xícara de chá, enquanto olhava para o jogo aberto.

E solene, a Justiça encontrava-se no centro da mesa.



terça-feira, 3 de maio de 2016

A Estrela (Ou Carta XVII)



A torre cai impiedosa. Aqueles que estão dentro são lançados para fora arrebatadoramente e não há mais teto ou parede para se proteger, não há mais bases sólidas para se manter. O destino cármico bate à porta e sem aviso a abre, escancara, destrói. Ficam para trás apenas destroços. 

E nossos jovens heróis, jogados ao tempo e à própria sorte, em total revelia à sua vontade? Sentem a grama fresca sob suas mãos, quando se apoiam e olham para a lua, que paira solene sob suas cabeças. Embora perene e de brilho intenso, a lua cheia não é a única a se mostrar a eles. Sob um céu estrelado, recordam-se de uma estrela em especial que a partir de um local distante, guiou grandes reis magos em uma peregrinação.

E ali está ela novamente, e como em um passe de mágica a lua escurece. Seu desaparecimento traria trevas e caminhos distorcidos, frutos de uma visão pouco acostumada à escuridão. Traria, se não existisse o astro luminoso com outros sete astros brilhantes ao seu redor. Abaixando os olhos, os heróis veem uma figura feminina nua, com um jarro que verte água infinita. Seu olhar, negro como a noite e com pequenos pontos brilhantes, acalenta seus corações e onde havia desespero pela derrocada, transforma-se em plena luz. 

“Sou Pandora, que abre a caixa e liberta a esperança. Sou Héspero, a Estrela Vespertina. Sou Eósfero, A Estrela da Manhã. Sou Astreus, Senhor das Estrelas. Sou a Cura e a Certeza. Sou aquela que derrama as águas da criação sob a terra. Vinde a mim e deixai os destroços daquilo que já não faz parte de vós.” 

Tiraram o elmo. Abandonaram a espada e o escudo. Despiram-se da armadura. Seguiram nus em sua direção.