sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O Julgamento (ou Carta XX)

Mulher sábia, anciã, mãe e mestra,
Você diminui a escuridão do céu e parteja o nascer do sol,
Possuidora de energia e sabedoria,
Criadora do movimento e do significado,
Dai-me da sua força, ensine-me sua sabedoria.
No seu grande caldeirão Awen,
Eu experimento sua magia e conheço seu poder,
Eu transformo minha forma e aprendo com seu conhecimento.
Assim, eu começo a minha busca e ouço a sua inspiração,
Para um novo começo, o fim e a inevitável morte,
Meu renascimento sendo guiado por você, Grande Cerridwen!


Ouviu ao longe a trombeta que indicava: Fim.

Era um boneco feito de estopa e recheado com palha. Diariamente a jovem bruxa acrescentava as experiências que estava vivendo, mas apenas as ruins; não estava entretanto, criando um receptáculo de sentimentos maus, muito pelo contrário, agradecia e mentalmente depositava aquilo que deveria no boneco. Por 7 anos foi como um mantra, todos os dias às 23 horas se encontrava com a pequena forma e nela acrescentava as dificuldades, as dores, as ansiedades e tudo aquilo que não queria que permanecesse nela – não queria que essas coisas represassem em si como água parada, que estraga e não segue o ciclo natural.
***
Ouviu batidas à sua porta, 3 batidas rápidas repetidas 3 vezes. Achou estranha a pressa de quem estava ali, mas se levantou rapidamente e a abriu com cuidado.

Viu um homem de idade se apoiando em uma madeira nodosa, que lhe servia de apoio quase como uma bengala; era encurvado, a corcunda não era tão saliente mas o suficiente para que fosse perceptiva; olhos negros e serenos, ao fitá-los a jovem pode jurar por instantes estar contemplando o infinito; suas vestes eram simples em tons de cinza, fazendo com que ela se lembrasse de aldeões de uma vila próxima.

- Bom dia senhor.

- Bom dia minha jovem, teria por acaso um copo de água para este velho senhor?

- Sim... entre.

Vagarosamente o velho caminhou para dentro da casa, e sem convite encostou sua bengala na parede e se sentou à mesa. Um pouco estranhada pela entrada do homem e a clara indiferença pela falta de convite para sentar-se, foi até a cozinha e encheu um copo com a água do jarro de barro. Levou até o velho e então viu um candeeiro sob sua mesa e se indagou de onde ele havia tirado o objeto.

Enquanto bebia a água, seus olhos permaneciam fixados na jovem, que começou a mexer as mãos para encontrar uma posição confortável diante do olhar fixo do velho. Ela não percebeu, mas ele sorria enquanto virava o copo.

- Gratidão minha jovem, uma moça que mata a sede de um velho recebe as bênçãos das Deusas.

Ao ouvir a frase a moça estranhou. Havia algum tempo que os adoradores dos antigos deuses eram perseguidos. Reteve-se em acenar com a cabeça e desejou que o homem fosse logo embora.

- Você tem se esforçado minha jovem. A sua busca não é em vão. – Levantou-se, pegou o candeeiro, a bengala e foi para a porta enquanto ela ficou em silêncio, agora com medo.

- Esteja pronta. – Com um sorriso benevolente, abriu a porta e partiu.

***

Era madrugada e uma luz de fogueira entrou repentinamente pela janela da casa. A jovem acordou assustada e teve medo que os aldeões estivessem à sua porta, prontos para levá-la a julgamento.
Respirou fundo, vestiu-se rapidamente e pegou o boneco de estopa e palha colocando no bolso de seu vestido. Sabia que fugir não era uma alternativa e dirigiu-se à porta em passos firmes, costas eretas e olhar determinado. Se fosse esse o momento, não iria morrer gritando ou pedindo clemência de quem não a possuía.

Abriu a porta.

Diante de si viu três mulheres, uma grávida, uma mais jovem do que ela, uma de idade avançada ao meio das outras duas. Em frente a elas, um caldeirão grande que fumegava sob uma fogueira. A bruxa sentia a presença de alguns animais por perto, mas não conseguia identificar quais eram.

- Seja bem-vinda. – Disseram as três ao mesmo tempo. Milhares de borboletas saíram do caldeirão e passaram a voar ao redor das 4 mulheres, criando a sensação de não estarem mais na frente da casa da bruxa. Maravilhada, ela entendeu o que estava para acontecer.

- Costurado com amor. – Disse a grávida

- Guardado com carinho. – Disse a mais jovem

- Depositada toda a dor. – Disse a mais velha

A bruxa deu alguns passos à frente e tirou o boneco do bolso – parou diante do caldeirão e o olhou para ele em suas mãos.

- O que ofereço é tudo o que tenho. – Ergueu o receptáculo – Ad astra per áspera.

- Até às estrelas, sob os espinhos. – Disseram as três.

A bruxa então deixou o boneco cair no caldeirão; as três mulheres seguraram juntas a colher que mexia o caldeirão e começaram movimentos circulares, revelando tanto dentro do caldeirão quanto na fumaça que dele saía, tudo aquilo que a bruxa havia depositado no receptáculo.

As borboletas passaram a voar em uma velocidade muito maior e a fumaça cercou a bruxa que passou a sentir tonturas. Sentiu seu corpo desfalecendo enquanto tentava manter um único pensamento: “Gratidão Cerridwen”.

***

Acordou em sua cama; ainda que sentisse um cheiro de fumaça em suas roupas, ainda que não houvesse mais o receptáculo, ainda que tivesse visto algumas borboletas dentro de sua casa, não tinha certeza se aquilo foi um sonho. Mas ainda que fosse um sonho, ela sabia que havia sido real.

Ouviu batidas à sua porta, 3 batidas rápidas repetidas 3 vezes. Achou estranha a pressa de quem estava ali, mas se levantou rapidamente e a abriu com cuidado.

O velho viu então uma jovem de olhos azuis e com profundidade tal como o mar e se sentiu enfeitiçado por algum momento; um rosto firme, expressão sem medo; segurava a porta e estava ali parada bloqueando a entrada; no alto ao seu lado, uma mariposa estava pousada na lamparina que balançava levemente ao vento.

- Bom dia senhor.

- Bom dia minha jovem, teria por acaso um copo de água para este velho senhor?

- Sim. Aguarde aqui.

Ao observar a porta se encostar enquanto esperava, o velho sorriu pela jovem bruxa.
Ao voltar a mulher trazia um jarro de barro em seus braços.

- Aqui, leve-o caso sinta mais sede.

- Gratidão minha jovem, uma moça que mata a sede de um velho recebe as bênçãos das Deusas.

- Ubi caritas et amor, Dea ibi est.

O velho lhe deu as costas e deu alguns passos com seu candeeiro balançado de um lado para o outro. 

Olhou para trás brevemente.

Sorriram um para o outro.




terça-feira, 16 de agosto de 2016

A Morte (ou Carta XIII)





Ouviu ao longe a trombeta que avisava: Fim.

Como pode um sentimento acabar por culpa de erros cometidos de formas tão grotescas? Como pode uma relação encontrar em seu fim uma forma de superar e se erguer? Os olhos ficam marejados, o estômago em um turbilhão de sensações (nenhuma boa), a boca em contradição com os olhos, mantém-se seca e as mãos ficam geladas.

A espada atravessa o abdômen do samurai que não grita, não geme. Apenas aceita que é aquele o momento de demonstrar sua força, sua coragem e sua honra. A dor lenta espalha-se por todo o seu corpo e o consome por inteiro. Mas ainda que as vísceras estejam à vista da plateia, ele não deve parar – assim recobrará aquilo que foi perdido. De um lado a outro, um corte profundo. Não tão diferente do que às vezes devemos fazer.

A Morte passa levemente sua mão pelo corpo estendido, enquanto o público começa a se dispersar. À sua vista a adaga ensanguentada enquanto que não tão longe, a família mantém-se impávida.

- Estou pronto – Disse o samurai.

- Um ato bonito de qualquer forma. Haverá um tempo que isso não mais será possível, mas as pessoas escolherão outras formas de fazê-lo. – Havia um ar de desinteresse em sua fala, quase desdém.

O samurai assentiu, sem saber do que a mulher falava.

- Não acha estranho como há tanta dor nos términos? Há um quê de sacrifício. Não entendem uma lei universal simples.

O homem manteve-se ereto enquanto ouvia, com uma expressão sem sentimentos.

- O fim deveria ser um jubilo. Sabe o que significa? O fim significa que quando a folha seca cai no chão ela servirá para o propósito de nascimento e crescimento de outra árvore. O ciclo sem fim a que todos que estão vivos permanecem presos.

- Diga-me, jovem alma, do que mais gostava quando era encarnado?

- Gostava do sol da manhã, quando me sentava à varanda de minha casa e sentia uma brisa calma e fria no rosto.

- Diga-me então, jovem alma, o que você imagina que ainda irá gostar quando voltar a ser encarnado?