quarta-feira, 8 de março de 2017

A Força (Ou Carta IX)



Levou o cigarro à boca para mais uma tragada. Olhava para o sol que lentamente se despedia de um dia de céu azul e sorria com os olhos diante da cena que esquentava a alma.

Dominar a si mesmo.

Refletiu por uns instantes sobre como o último ano o havia afetado e como se portava em vistas do início do novo caminho que se aproximava dele. Não havia sinais das mudanças que ocorreriam, mas em seu âmago a certeza era cada vez mais clara: chegara ao fim de mais um período (particularmente) adverso.

Desta vez, contudo, em meio às quedas e às dificuldades e obstáculos que se erguiam como muralhas de espinhos, sem passagem, sem escalada, apenas as dores do toque de agulha que as protuberâncias de metal a se projetarem diretamente para a pele, lembrou-se então daquilo que marcara em si mesmo – ad astra per aspera. E percebeu como havia passado pelo muro e como, de lá de cima do balão, ele parecia pequeno e inofensivo.

Mais um trago e soltou a fumaça observando como adquiriam contornos e formas, dissipando-se no ar.

***

“Quando o carnaval passar, quando o carnaval passar
Vamos dançar
Qualquer coisa é melhor que tristeza
Por favor
Se esqueça”

Levou a garrafa à boca e sentiu o gosto da vodka tocar suas papilas gustativas se estremecendo e então engoliu o líquido rapidamente. Sentia uma leve dormência em seus sentidos e uma letargia em seus pensamentos, mas fisicamente estava cada vez disposto.

Lembrou-se novamente de um velho amigo a dizer “as pessoas vão para se divertir, mas o lugar é tão ruim que só se divertem quando estão bêbadas, então saem para beber para se divertir. Imagine um lugar tão ruim que você não consegue estar ali se estiver sóbrio – então por que as pessoas vão até lá?”. De alguma forma era essa a sensação, mas por algum motivo a bebida naquele momento parecia ser apenas um toque a mais. Talvez pela senhora de 84 anos a se divertir com os indicadores apontados para cima e uma dancinha leve, ou talvez pelas crianças que brincavam ao seu redor jogando espumas por todos os lados, ou talvez pelas famílias que estavam ali e não se importavam de dividir o mesmo local com o morador de rua (que tantas vezes era ignorado e invisibilizado) que dançava quase no mesmo passo que a senhorinha e com a disposição das crianças – talvez esse conjunto e a disposição de todos ali para brincar e se divertir o fizessem se sentir à vontade, como não se sentia em qualquer espaço.

Não pensou em nada, se esqueceu dos problemas, dos questionamentos, das incertezas e até certo ponto, dos sentimentos. Um piloto automático que toma o controle mas não impede risos e diversões.
 Viu-se por instantes, em meio à tantas pessoas diferentes entre si, como um abençoado, na situação em que a água benta que batiza a criança, estava na garrafa com forte gosto alcoólico.

“Vou criar um lugar escondido
Pra fazer meu recital
Quando o carnaval passar, quando o carnaval passar
Quando esse escarcéu passar”

***

- Ele parece que te faz bem.

Essas palavras lhe socaram a boca do estômago, mas deveria ser assim, deveria deixar ir.

No fim não era tão diferente das outras histórias – sempre que se apaixonava antes, as coisas não evoluíam, como um golpe do destino, e mesmo as tentativas de fazer coisas interessantes e de fazer o outro sorrir ou se sentir feliz eram em vão, então o melhor era sempre permitir ir. Tirar do coração.

Mas algo diferente aconteceu, sua frustração diante da repetida situação já não o afetava tanto quanto outrora.

“Você escreveu todas essas coisas para as quais dizer adeus. Mas há tantas coisas boas. Por que não dizer adeus às coisas ruins? Diga adeus a todas as vezes que se sentiu perdido. Aos momentos que houve um não ao invés de um sim. Aos arranhados e machucados, à toda mágoa. Diga adeus a tudo o que você quer fazer pela última vez”

E foi então que disse adeus a todas as vezes que assistia o seu desejo acontecer com outras pessoas.

Disse adeus ao abandono.

Disse adeus para todos os momentos que se sentia sozinho e não tinha com quem compartilhar seus momentos de felicidade.

Disse adeus para aquele novembro que lhe tirou o chão.

Disse adeus à solidão que sentia quando esperou por horas que algum familiar chegasse ao hospital.

Disse adeus para todas as vezes que nenhuma pessoa ao seu redor demonstrava interesse em comemorar seu aniversário.

Disse adeus para quando apenas sua mãe esteve presente na sua colação de grau.

Disse adeus para as pessoas que o procuravam tempos depois de términos e separações para lhe dizer o quanto havia sido importante, mas não valorizado.

Disse adeus para todas as vezes que alguém não acreditou em sua capacidade ou que o desmereceu.

Disse adeus para toda forma de dor, desencorajamento, mágoas, todos os nãos, as mentiras a seu respeito e toda tentativa de fazê-lo menor do que era.

Disse adeus para todos os que se aproximavam sem nada a oferecer, e muito a subtrair.

Disse adeus para todas as vezes que se relacionou por necessidade e carência.

Disse adeus para tudo e para todos que o achavam menor, fraco.


Pois não era.





Nenhum comentário:

Postar um comentário