A última, o fim, o grand
finale. Gira em torno de si mesma enquanto lança suas mãos ao ar, fazendo
lentos movimentos como se criasse o mundo – dança sem que mais nada importe.
Encerra em si, as cortinas se fecham... e se abrem para o bis.
Toca docemente meu rosto, em uma sintonia virtuosa que diz
sem palavras: é chegada a hora.
E todos eles dançam ao redor como quadros que observam a
finalização, cientes de cada contribuição.
O Mago tira sua cartola, e solta seus cabelos enquanto
balança a cabeça com força, jogando o bigode para longe. Diante de si todas as
ferramentas que gentilmente cedeu para a caminhada. Tudo à disposição, mas que
fique claro que a autossuficiência é um engano se não aceitar os desígnios dos
céus. Ela aponta para cima como se indagasse algo.
A Torre flutua sendo atingida por um raio, lançando duas
pessoas para fora; e logo depois essas mesmas pessoas a reconstroem. Vem então
um terremoto e tudo se repete. E então vem o fogo. E então vem o mar. E a
pessoas a reconstroem – afinal, a Torre existe e virá de qualquer forma,
arrasará nossas frágeis e ineficazes paredes para que permaneça apenas aquilo
que precisa permanecer. Um relâmpago brilha ameaçador antes de atingir a
construção novamente.
Ela se vira com o rosto ansioso e me olha fixamente – atrás
dela dois homens se colocam para a derradeira escolha, cada um com
características tão distintas que é impossível tentar racionalizar a questão. O
cupido, o grande e incansável Enamorado se coloca com a flecha apontada e
quando atira um anel de casamento cai das mãos dela. A escolha por aquilo que
apela nosso coração exige certos sacrifícios. Mas toda escolha exige
sacrifícios.
No próximo quadro, brilha a Lua com força e ela reflete as
roupas prateadas da Grande Avó que, com um sorriso gentil, traz toda uma gama
de sombras que se lançam a partir da sua imagem – lembrando que às vezes os
caminhos se confundem e que a dúvida e o medo do escuro são naturais, mas basta
olhar para ela, basta acostumar os próprios olhos ao jogo de sombras
bruxuleantes. Atrás dela, a areia remexida aguarda o retorno.
A luz quase me cega, mas aos poucos me acostumo. Um fauno
pula de um lado para o outro enquanto dois jovens nus estão deitados lado a lado
comendo uma maçã, e sorriem enquanto se divertem com algo que apenas os dois
conseguem entender. Ao alto do quadro o Sol vai de lado a outro, do amanhecer
até quase escurecer, para então voltar pelo mesmo caminho. Ao contrário do
quadro, eu sabia que nenhum sol dura para sempre – assim como nenhuma lua. Mas
devemos valorizar nossos momentos de felicidade, tanto quanto os momentos de
confusão.
A noite se mostra aveludada e um certo temor se apodera de
mim quando na parte inferior do quadro vejo destroços daquilo que seria a Torre,
e as duas pessoas a chorarem. Um brilho tímido surge no céu e vai aumentando a
intensidade enquanto os dois completamente nus limpam suas lágrimas. A Torre
vem sempre para destruir aquilo que não serve e a Estrela surge no fundo da
caixa tal qual a esperança – depois que todos os males foram libertos.
A balança pende para aquilo que mais pesa. Os atos, as
palavras, os desejos... são plumas que caem uma a uma nos pratos, cada atitude
e cada pensamento tem seu próprio peso – o quanto deve pesar então uma pessoa
por completo? Colocamos ali tudo a que se refere a nós e ela julga, mostra para
qual lado o que fazemos pesa, e então colhemos.
Uma mulher negra se levanta e com a postura ereta e o corpo
determinado quase se projeta para fora da moldura. Com a lança em punho e com
os desenhos africanos da guerra pelo corpo ela se apodera da força que tantos
dizem ser masculina – ela é a caçadora, ela trará o alimento, ela proverá, ela
conquistará, ela subjugará. Contemplo então como é possível apoderar-se do
arquetípico, e sem muito tempo para refletir, ouço um grito de guerra que enche
meu coração com coragem e determinação. Sabia então que estava pronto para a
peleja.
O samurai comete o harakiri
e sinto a dor em meu estômago, olho para baixo e vejo minhas mãos segurando firmemente
a katana que me atravessa o corpo. Minha visão fica turva enquanto o sangue
jorra da minha boca. Tudo enegrece. Olho para meu corpo caído e quando ergo a
cabeça para o quadro ouço gritos de dor enquanto uma criança vem ao mundo. A
Morte permeia em tudo, e em nós quando decidimos cortar e tirar de nós aquilo
que não precisamos - não importa a dor dilacerante que se segue, mas sabemos
que renasceremos.
A trombeta soa com força e então o samurai levanta se
transformando em uma anciã, ao lado de uma mulher grávida e de outra, mais jovem
que as três. Colocam-se a mexer no caldeirão que está na frente delas,
transmutando tudo o que é colocado nele. Uma lagarta paira flutuando acima das
três e então um casulo a cerca para logo depois se abrir e dali voar a
borboleta que cuidadosamente pousa no instrumento de sopro segurado pelo anjo.
Quando soa a trombeta somos chamados para a transformação, o anjo do Julgamento
nos chama a refletir e evoluir.
A Imperatriz segura o cetro e o escudo do alto de seu trono.
Cria, amamenta, cuida e tudo o que toca cresce e floresce, mesmo o mais frio e
machucado coração. A mãe por excelência que é também a mulher sensual que tem
em sua cama o homem que deseja. Ela se coloca no quadro como uma figura altiva,
com a experiência e a sabedoria escrita em seu rosto, proporcionada pelo amor
que nutre e abunda.
Uma árvore cresce do lado direito, próximo à moldura. Diante
de meus olhos vejo o caule se formando e indo ao alto para no final terminar em
um galho para então entrar em cena um homem que sobe na árvore, laça a própria
perna e se pendura de cabeça para baixo. Ele cruza a outra perna formando o
número quatro e seu rosto expressa uma serenidade infinita, de alguém que se
coloca na posição e aguarda não ser salvo. Escolha própria se enforcar. Escolha
própria permanecer assim. Mas seus olhos fechados talvez contestem essa verdade.
O Carro avança com seus cavalos, um negro e outro branco.
Vejo o rastro que ele deixa, mas seu condutor não olha para trás, há muito o
que avançar e se prender ao passado não trará progresso algum. Os animais puxam
as rédeas cada um para um lado, o bem e o mal se misturam enquanto avançam
quase indomáveis, mas o homem faz jus à coroa que carrega e grita seus nomes e
os puxa de volta. Ele conduz.
Íris se vira lentamente para me contemplar. Um rosto sereno
com variadas cores que quase saltam do quadro – em suas mãos dois cálices, o
qual ela vira a água de um para outro. Vejo em seus lábios palavras se formando,
sem som. “Só existe uma maneira de se
viver para sempre, que é compartilhando a sabedoria adquirida e exercitando a
gratidão. É o homem entender que é parte do todo: nem ser menos, nem ser mais,
ser parte da natureza”.
O homem, ou talvez fosse mulher, surgiu por entre uma
espessa névoa azulada e sem se deter em demonstrar o seu gênero mostrou um
livro, um livro que me pertence. Nossas histórias nos definem e nossa memória é
um grande apócrifo que conta o nosso nascimento à nossa crucificação,
ressurreição e morte. A Sacerdotisa trás para nós aquilo que está em nós, basta
olharmos para dentro, basta olharmos o espelho.
O velho balançou o candeeiro de prata e com um gesto bondoso
me cumprimentou. Um velho amigo que saúda a minha passagem. Aceno de volta e
nessa troca percebo claramente que agora é o nosso encontro final, pois ao
partir desse quadro não serei mais o mesmo – mas não há espaço para lágrimas e
despedidas, pois o candeeiro que ele balança é o mesmo que está comigo e não me
esquecerei.
A Roda gira e quem estava em baixo vai aos poucos escalando,
quem estava escalando chega ao topo, quem estava no topo escorrega ladeira
abaixo, que antes escorregava agora encontra o fundo. E ela gira, gira, gira.
Não pude conter o riso olhando para ela e me recordando a forma como chegou
para mim. Agradeço pela presença, agradeço o momento, mas assim como ela, estou
de passagem.
Olhou para o garoto sentado na cadeira com cordas caídas ao
seu redor. Hora, não era o Diabo que tentara prendê-lo e mantê-lo no escuro? E
ele agora sorria maliciosamente enquanto mantinha os pequenos pés a prender as
cordas. Quem estava dominando quem, quando tivemos nosso encontro?
O Hierofante ostenta um olhar firme e agora ele sabe que
algo foi feito. Outras coisas também foram feitas. De algum modo me sinto como
ele, de algum modo me sinto como se estivéssemos em igualdade e isso causa uma
certa ansiedade em meu peito. Uma despedida e uma boas-vindas.
O Leão rugiu e a mulher o abraçou. Ele que estava prestes a ataca-la
nada pode contra os braços gentis que o envolviam e o carinho que recebia em
sua juba. Deixou-se levar pela mulher, não pela imposição dela, mas apenas por
querer assim. E ela controlou seus instintos animais, ela dominou sua fome,
calou seus dentes quando estes queriam abocanhar e destruir algo. Eles
tornaram-se apenas um.
***
Os quadros giraram rápidos ao meu redor até que se tornassem
um borrão e então, girando, foram se elevando e diminuindo de tamanho, até se
tornarem um arco que poderia caber em minhas mãos. Mas não estavam comigo.
Ele saltou fazendo acrobacias, cambalhotas e dando saltos
mortais. Parou no meio do picadeiro, com a mão estendida como se oferecesse
algo – mas não estava oferecendo – o arco que ainda estava a girar desceu e
parou a uma curta distância da palma de sua mão. Ele então começou a dançar com
mais acrobacias que antes, enquanto o arco girava ao seu redor, e os dois
dançavam como se fossem velhos parceiros. Um pequeno cão apareceu latindo e
pulando, na tentativa de pegar um dos panos que balançavam a partir das vestes
do Louco.
O chão do picadeiro se escureceu e tudo ao redor passou a
brilhar com pequenos pontos de luz.
Demorei a perceber que eram estrelas e que
então o Tolo e as cartas dançavam em frente a um planeta que pouco a pouco saía
das sombras e se mostrava como quem não pede licença.
E sem aviso, tudo escurece.
***
Acordo nu, um cão me
lambe o rosto.
Me espreguiço e à minha direita um precipício.
Começo a gargalhar enquanto caminho em sua direção.
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