quarta-feira, 19 de abril de 2017

O Mundo (Ou Carta XXI)




A última, o fim, o grand finale. Gira em torno de si mesma enquanto lança suas mãos ao ar, fazendo lentos movimentos como se criasse o mundo – dança sem que mais nada importe. Encerra em si, as cortinas se fecham... e se abrem para o bis.

Toca docemente meu rosto, em uma sintonia virtuosa que diz sem palavras: é chegada a hora.

E todos eles dançam ao redor como quadros que observam a finalização, cientes de cada contribuição.

O Mago tira sua cartola, e solta seus cabelos enquanto balança a cabeça com força, jogando o bigode para longe. Diante de si todas as ferramentas que gentilmente cedeu para a caminhada. Tudo à disposição, mas que fique claro que a autossuficiência é um engano se não aceitar os desígnios dos céus. Ela aponta para cima como se indagasse algo.

A Torre flutua sendo atingida por um raio, lançando duas pessoas para fora; e logo depois essas mesmas pessoas a reconstroem. Vem então um terremoto e tudo se repete. E então vem o fogo. E então vem o mar. E a pessoas a reconstroem – afinal, a Torre existe e virá de qualquer forma, arrasará nossas frágeis e ineficazes paredes para que permaneça apenas aquilo que precisa permanecer. Um relâmpago brilha ameaçador antes de atingir a construção novamente.

Ela se vira com o rosto ansioso e me olha fixamente – atrás dela dois homens se colocam para a derradeira escolha, cada um com características tão distintas que é impossível tentar racionalizar a questão. O cupido, o grande e incansável Enamorado se coloca com a flecha apontada e quando atira um anel de casamento cai das mãos dela. A escolha por aquilo que apela nosso coração exige certos sacrifícios. Mas toda escolha exige sacrifícios.

No próximo quadro, brilha a Lua com força e ela reflete as roupas prateadas da Grande Avó que, com um sorriso gentil, traz toda uma gama de sombras que se lançam a partir da sua imagem – lembrando que às vezes os caminhos se confundem e que a dúvida e o medo do escuro são naturais, mas basta olhar para ela, basta acostumar os próprios olhos ao jogo de sombras bruxuleantes. Atrás dela, a areia remexida aguarda o retorno.

A luz quase me cega, mas aos poucos me acostumo. Um fauno pula de um lado para o outro enquanto dois jovens nus estão deitados lado a lado comendo uma maçã, e sorriem enquanto se divertem com algo que apenas os dois conseguem entender. Ao alto do quadro o Sol vai de lado a outro, do amanhecer até quase escurecer, para então voltar pelo mesmo caminho. Ao contrário do quadro, eu sabia que nenhum sol dura para sempre – assim como nenhuma lua. Mas devemos valorizar nossos momentos de felicidade, tanto quanto os momentos de confusão.

A noite se mostra aveludada e um certo temor se apodera de mim quando na parte inferior do quadro vejo destroços daquilo que seria a Torre, e as duas pessoas a chorarem. Um brilho tímido surge no céu e vai aumentando a intensidade enquanto os dois completamente nus limpam suas lágrimas. A Torre vem sempre para destruir aquilo que não serve e a Estrela surge no fundo da caixa tal qual a esperança – depois que todos os males foram libertos.

A balança pende para aquilo que mais pesa. Os atos, as palavras, os desejos... são plumas que caem uma a uma nos pratos, cada atitude e cada pensamento tem seu próprio peso – o quanto deve pesar então uma pessoa por completo? Colocamos ali tudo a que se refere a nós e ela julga, mostra para qual lado o que fazemos pesa, e então colhemos.

Uma mulher negra se levanta e com a postura ereta e o corpo determinado quase se projeta para fora da moldura. Com a lança em punho e com os desenhos africanos da guerra pelo corpo ela se apodera da força que tantos dizem ser masculina – ela é a caçadora, ela trará o alimento, ela proverá, ela conquistará, ela subjugará. Contemplo então como é possível apoderar-se do arquetípico, e sem muito tempo para refletir, ouço um grito de guerra que enche meu coração com coragem e determinação. Sabia então que estava pronto para a peleja.

O samurai comete o harakiri e sinto a dor em meu estômago, olho para baixo e vejo minhas mãos segurando firmemente a katana que me atravessa o corpo. Minha visão fica turva enquanto o sangue jorra da minha boca. Tudo enegrece. Olho para meu corpo caído e quando ergo a cabeça para o quadro ouço gritos de dor enquanto uma criança vem ao mundo. A Morte permeia em tudo, e em nós quando decidimos cortar e tirar de nós aquilo que não precisamos - não importa a dor dilacerante que se segue, mas sabemos que renasceremos.

A trombeta soa com força e então o samurai levanta se transformando em uma anciã, ao lado de uma mulher grávida e de outra, mais jovem que as três. Colocam-se a mexer no caldeirão que está na frente delas, transmutando tudo o que é colocado nele. Uma lagarta paira flutuando acima das três e então um casulo a cerca para logo depois se abrir e dali voar a borboleta que cuidadosamente pousa no instrumento de sopro segurado pelo anjo. Quando soa a trombeta somos chamados para a transformação, o anjo do Julgamento nos chama a refletir e evoluir.

A Imperatriz segura o cetro e o escudo do alto de seu trono. Cria, amamenta, cuida e tudo o que toca cresce e floresce, mesmo o mais frio e machucado coração. A mãe por excelência que é também a mulher sensual que tem em sua cama o homem que deseja. Ela se coloca no quadro como uma figura altiva, com a experiência e a sabedoria escrita em seu rosto, proporcionada pelo amor que nutre e abunda.

Uma árvore cresce do lado direito, próximo à moldura. Diante de meus olhos vejo o caule se formando e indo ao alto para no final terminar em um galho para então entrar em cena um homem que sobe na árvore, laça a própria perna e se pendura de cabeça para baixo. Ele cruza a outra perna formando o número quatro e seu rosto expressa uma serenidade infinita, de alguém que se coloca na posição e aguarda não ser salvo. Escolha própria se enforcar. Escolha própria permanecer assim. Mas seus olhos fechados talvez contestem essa verdade.

O Carro avança com seus cavalos, um negro e outro branco. Vejo o rastro que ele deixa, mas seu condutor não olha para trás, há muito o que avançar e se prender ao passado não trará progresso algum. Os animais puxam as rédeas cada um para um lado, o bem e o mal se misturam enquanto avançam quase indomáveis, mas o homem faz jus à coroa que carrega e grita seus nomes e os puxa de volta. Ele conduz.

Íris se vira lentamente para me contemplar. Um rosto sereno com variadas cores que quase saltam do quadro – em suas mãos dois cálices, o qual ela vira a água de um para outro. Vejo em seus lábios palavras se formando, sem som. “Só existe uma maneira de se viver para sempre, que é compartilhando a sabedoria adquirida e exercitando a gratidão. É o homem entender que é parte do todo: nem ser menos, nem ser mais, ser parte da natureza”.

O homem, ou talvez fosse mulher, surgiu por entre uma espessa névoa azulada e sem se deter em demonstrar o seu gênero mostrou um livro, um livro que me pertence. Nossas histórias nos definem e nossa memória é um grande apócrifo que conta o nosso nascimento à nossa crucificação, ressurreição e morte. A Sacerdotisa trás para nós aquilo que está em nós, basta olharmos para dentro, basta olharmos o espelho.

O velho balançou o candeeiro de prata e com um gesto bondoso me cumprimentou. Um velho amigo que saúda a minha passagem. Aceno de volta e nessa troca percebo claramente que agora é o nosso encontro final, pois ao partir desse quadro não serei mais o mesmo – mas não há espaço para lágrimas e despedidas, pois o candeeiro que ele balança é o mesmo que está comigo e não me esquecerei.

A Roda gira e quem estava em baixo vai aos poucos escalando, quem estava escalando chega ao topo, quem estava no topo escorrega ladeira abaixo, que antes escorregava agora encontra o fundo. E ela gira, gira, gira. Não pude conter o riso olhando para ela e me recordando a forma como chegou para mim. Agradeço pela presença, agradeço o momento, mas assim como ela, estou de passagem.

Olhou para o garoto sentado na cadeira com cordas caídas ao seu redor. Hora, não era o Diabo que tentara prendê-lo e mantê-lo no escuro? E ele agora sorria maliciosamente enquanto mantinha os pequenos pés a prender as cordas. Quem estava dominando quem, quando tivemos nosso encontro?

O Hierofante ostenta um olhar firme e agora ele sabe que algo foi feito. Outras coisas também foram feitas. De algum modo me sinto como ele, de algum modo me sinto como se estivéssemos em igualdade e isso causa uma certa ansiedade em meu peito. Uma despedida e uma boas-vindas.

O Leão rugiu e a mulher o abraçou. Ele que estava prestes a ataca-la nada pode contra os braços gentis que o envolviam e o carinho que recebia em sua juba. Deixou-se levar pela mulher, não pela imposição dela, mas apenas por querer assim. E ela controlou seus instintos animais, ela dominou sua fome, calou seus dentes quando estes queriam abocanhar e destruir algo. Eles tornaram-se apenas um.

***


Os quadros giraram rápidos ao meu redor até que se tornassem um borrão e então, girando, foram se elevando e diminuindo de tamanho, até se tornarem um arco que poderia caber em minhas mãos. Mas não estavam comigo.

Ele saltou fazendo acrobacias, cambalhotas e dando saltos mortais. Parou no meio do picadeiro, com a mão estendida como se oferecesse algo – mas não estava oferecendo – o arco que ainda estava a girar desceu e parou a uma curta distância da palma de sua mão. Ele então começou a dançar com mais acrobacias que antes, enquanto o arco girava ao seu redor, e os dois dançavam como se fossem velhos parceiros. Um pequeno cão apareceu latindo e pulando, na tentativa de pegar um dos panos que balançavam a partir das vestes do Louco.

O chão do picadeiro se escureceu e tudo ao redor passou a brilhar com pequenos pontos de luz. 

Demorei a perceber que eram estrelas e que então o Tolo e as cartas dançavam em frente a um planeta que pouco a pouco saía das sombras e se mostrava como quem não pede licença.

E sem aviso, tudo escurece.


***


Acordo nu, um cão me lambe o rosto. 
Me espreguiço e à minha direita um precipício. 
Começo a gargalhar enquanto caminho em sua direção.


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