domingo, 25 de setembro de 2016

O Carro (ou Carta VII)

Brilha brilha farolzinho
Mostra o que vem à frente
Acende o vermelho para o que está atrás
Passe a lombada,
Desvie do buraco,
Vamos em frente meu amor.



***

Construíram uma estátua em homenagem aos dois. Estavam com mãos dadas como se fossem girar, aos pés dois gatos: um preto e branco e outro amarelo e branco. Mas olhando dali eram cinzas, os quatro. Cores que fazem toda diferença, ainda mais quando você prefere o mundo bem mais colorido, sem tons pastéis e essas cores meio apagadas. Tons vivos, de vermelho sangue, azul céu (sem nuvens), amarelo ouro, verde grama após a chuva (sabe quando sai o sol logo após uma pancada feia de chuva? Sabe a grama? Essa cor).

Todos os dias a população passava por ali, não olhavam os pombos a pousar e sujar a estátua. Não viam as cores que ela sempre teve, não percebiam as cores do amor dos dois.

Não sabiam da música que um dia poderiam gostar, não sabiam da comida predileta que poderiam fazer um para o outro, não sabiam do amor que poderiam ter com os gatos, não sabiam de nenhuma penteadeira, não sabiam de nada. Talvez nem se importassem. Não tem como você se importar com aquilo que você não conhece e eles... bem... aquelas pessoas nem se importavam em conhecer.

Mas não fazia tanta diferença assim, saberem ou não saberem.

Exceto talvez nos dias que aquela pessoa aparecia na praça segurando um buquê de rosas vermelhas e as colocava sob o pé da estátua. Era meio estranho e todos olhavam enquanto caminhavam rapidamente para não perderem tempo, sem saber exatamente, que quanto mais rápido caminhavam e pelo motivo que caminhavam, mais tempo perdiam. Mas como dizem, tempo é dinheiro. E se envolvem dinheiro no meio... o resto você já sabe.

Mas um dia a estátua demonstrou sinais de que já não aguentaria ficar ali por muito tempo. Já haviam roubado o gato branco e amarelo (me desculpe o deslize, por favor leia as últimas duas cores como sendo: cinza), a cabeça de um deles tinha despencado em algum momento (e as pessoas apressadas com seus inadiáveis compromissos não saberiam dizer em qual momento foi) e a outra cabeça estava tão deformada, que já nem poderia refletir a beleza que teve quando era mais... qual a palavra para uma estátua jovem? Nova?

E o homem que ali depositava rosas também deixou de aparecer. Estaria tão preocupado com seus afazeres que não retornava mais ao local? Talvez. Não se tem muita certeza quando ninguém percebe nada, ainda mais aquelas pessoas tão apressadas e tão cercadas de problemas a resolver. O Pequeno Príncipe teria questionado por que elas estavam tão apressadas que não olhavam e não cuidavam de uma estátua com uma representação tão bonita.

Mas ele nem ele e nem a atenção das pessoas estava ali.

***

Fechou o livro sem gostar muito daquele final. Preferia histórias felizes, não histórias nas quais as coisas nem ao menos acontecem, era expectativa demais para se terminar com duas estátuas. O que o autor estava querendo com isso? Que coisa mais chata, desnecessária.

Foi colocar o livro no criado mudo ao lado da cama e sem querer o deixou cair. Quicou no chão e caiu com as últimas páginas abertas e escrito em letras grandes, estava ali “Epílogo”. Pegou o livro novamente e foi direto para as três últimas páginas e percebeu que o livro não se encerrava como parecia. Quer dizer, se encerrava ali aquela história. Ficou contente em saber que teria mais, ainda que uma história diferente julgando pela forma como o epílogo estava escrito, teve esperanças que haveria um final menos xoxo. Correria na livraria pela manhã e tentaria encontrar a continuação, sorriu com a esperança de se ter uma nova e mais empolgante história, ou pelo menos com o mesmo ritmo que o livro que acabou de ler, mas com um final digno de filmes hollywoodianos. Não estátuas paradas no tempo. O que o autor tinha na cabeça?

Pela manhã resolveu esperar no café do outro lado da rua onde estava a livraria. Deixou que abrissem enquanto bebericava a xícara e observou uma garota de cabelo castanhos escuros e roupas de ginástica olhando as vitrines da loja, obviamente em busca de algo que quisesse ler. Ou dar de presente a alguém. Será que tinha namorado? Decidiu pagar a conta e quando saiu do café ela já não estava mais à vista.

Ao entrar na livraria foi direto para o atendente e perguntou sobre o livro que era continuação do anterior e em um lapso, se esqueceu do nome dos dois livros – do velho e do novo. Enquanto abria sua bolsa estilo carteiro em busca do livro antigo, a garota surgiu do meio das estantes agradecendo a outro atendente e com o livro que ele desejava nas mãos, foi para o caixa.

- Aquele livro, estou procurando por ele.

- Ah sim, tivemos uma boa venda ... é o último exemplar. Há previsão de chegada de mais exemplares em duas semanas.

Sem pensar muito e decidido a contornar a situação, o rapaz foi até a moça que estava quase na boca do caixa.

- Quanto você quer no livro?

- Oi?

- Quanto você quer? Eu pago. Se quiser o dobro do valor eu te dou.

- Não está à venda. – Um sorriso sem graça.

- Realmente quero muito esse livro... – Fez cara de cachorro que cai da mudança. Ela riu e achou ele bem esquisito. Esquisito demais, afinal por que não procurava em outra livraria? Mas aquilo era bem diferente, uma situação única. Talvez se conhecesse ele melhor teria ótimas histórias para contar aos amigos. O cara que queria a todo custo um livro. Que viagem.

- Paga metade, eu levo e leio. Combinamos por mensagens um café ou algo do tipo e eu te entrego e te conto o final. Prometo ler em três dias.

- Vai me contar o final? – Disse meio confuso.

- Claro que não – Riu da inocência dele – Estou brincando!

- Pagar metade, pegar seu número e marcar um café. – Disse desconfiado. Ela era meio estranha e essa proposta mais ainda.

- E depois de você ler, você doa para alguma biblioteca. Os dois pagam metade ninguém fica com ele. Me parece justo. – Estendeu a mão para ele.

- Aceito!

***

“O que está achando do livro?” – Tomou coragem para mandar uma mensagem.

”Mais ou menos, prefiro mais aventura, fantasia”

“Como assim?”

“Gosto de livros que contam histórias com lugares distantes, feitiços, um príncipe disfarçado”

“Já ouvi algo assim”

“Talvez hahahahaha”

“Parece uma história que já existe”

“É sim, a parte mais bonita é quando se encontram no jardim, é um príncipe encantado e ela só descobre quem ele é quase no fim”

“Príncipes encantados. Você anda vendo muito Disney”

“Você que anda vendo de menos rs.”

“Talvez hahahahahaha”

“Bom, acabei ele hoje de tarde, um café amanhã pela manhã, em frente à livraria”

“Um café por favor!”

“Bem quente!”

***

 Após o café e uma conversa extremamente agradável, passaram pelo lugar favorito dos dois: a livraria, é claro. Por entre as estantes ela falava sobre os livros que havia lido e ele tentava dizer algo inteligente vez ou outra e ficou tranquilo ao ver que ela estava perdida por entre todos os livros que estava indicando para ele.

- Cidades de Papel. Não leia!

- Nossa, que ênfase. Motivo?

- Não tem um final lá muito feliz. Livros sem finais felizes deveriam ser banidos do mundo.

- Eu gosto de livros sem finais tão felizes assim, mostra o que a gente quer realmente. Tipo você, que não quer o que acontece naquele livro.

- Precisamos de finais nem tão felizes para saber quais são os felizes?

- Acho que sim.

- Então leia o livro – O pegou da prateleira e deu nas mãos dele.

- Hum... acho que não - E devolveu.

- Vamos? – Olhava as coisas ao redor com certa vivacidade, como se estivesse perto de embarcar em algo novo e muito excitante. Saiu da livraria.

Ele apressou o passo, sem ter muita certeza se conseguiria acompanhar aquela garota.

Mas...

No fundo...

Ele sabia que tentaria.

Ou melhor, conseguiria.



terça-feira, 20 de setembro de 2016

Oração nº 1 - A trilha do Rei de Espadas

Toda reza tem no fim um amém.
A Flor e o Navio, Capela. 



A língua é afiada como uma adaga, se não notar, ela o cortará.

O pensamento é rápido como o vento, não se prepare ele o carregará.

Não aparenta emoções, os olhos vidrados enxergam apenas o seu objetivo.

Move-se apenas em frente, atravessando tudo em seu caminho,

Não atropela ou empurra, passa por entre os obstáculos,

Os fracos e os sem estrutura vão ao chão, não resistindo à força avassaladora tal qual tempestade.

Brande orgulhosamente sua espada, a empunhadura é entalhada com o seu conhecimento e a lâmina forjada pela experiência.

Alguns diriam que se trata de um homem capaz de tudo para possuir o que quer.

Outros dirão que é frio e calculista, um homem maduro, de lábia.

Ele mesmo considera-se uma pessoa maldosa,

Mas talvez seja porque acredita demais que exista o certo e o errado, e que nem sempre o que precisa ser dito ou feito julga correto.

Há aqueles que assim como eu observa em admiração,

Contempla sem julgamentos a trilha que o guia, a motivação que o carrega e as conquistas que consegue.

O Príncipe de Gládios é coroado Rei, agora precisa de castelo e terras.

Sem olhar para trás, acena aos companheiros de tantas batalhas, como que em agradecimento.

Monta em seu cavalo, saca sua espada e cavalga rumo ao desconhecido,

Com a única certeza de que será bem sucedido.


- Contos da Jornada da Conquista, A dança das Lâminas - Introdução.

***


(16) A última visita

Caminhava com passos firmes em direção à tenda, apesar da convicção, era possível perceber uma certa incerteza em seu semblante, algo não estava certo. Ele não era das pessoas mais abertas que conheci, na verdade, por medo de que as emoções entrassem no caminho de seus objetivos as mantinha guardadas em algum lugar de sua mente e não de seu coração, reservava elas para aqueles que julgava merecedores. Ao por-se para dentro arrumou um velho encantamento dependurado ao lado da entrada.

“Você sabia que é de mal gosto manter amuletos de repulsão ao lado da entrada ao receber visitas?”

“Eu vou jogar essa velharia fora”

“Finalmente” replicou rindo.

“Ele nunca funciona, você continua entrando”

Riram juntos.

“Eu vou partir velha amiga, vim à sua tenda pedir um último conselho às cartas” – lançou um meio sorriso e continuou como quem estivesse à se explicar – “Não há mais nada nessas terras para conquistar, toda justiça que eu poderia fazer já foi feita e aquelas que não posso corrigir me corrõem, sinto-me como um carvalho em um pequeno vaso.”

“Entendo”

Saquei as cartas enquanto ouvia suas dúvidas e expectativas, ao final disse que havia sido nomeado rei, porém para isso seria necessário conquistar um novo território, terras vizinhas porém desconhecidas.

“Parabéns pela nomeação, vejo que seu futuro será brilhante, entretanto a conquista será árdua,  os obstáculos que você não transpassou aqui serão os mesmo lá, as amarguras serão as mesmas, é como dizem, muda o teatro, mudam os personagens, porém o enredo será o mesmo. A vida tem um jeito irônico de nos obrigar a aprender as liçoes às quais fugimos”

“Não me contou novidade alguma bruxa”

“Claro que não, se bem te conheço não é possível haver algo em que você não tenha pensado. Mas lembre-se: a lealdade de amigos ainda não foi conquistada, cuidado pois há aqueles que não veem com bons olhos um novo rei de gládios”

“Obrigado pelo conselho” - levantou-se rapidamente ajeitando a espada, sem jeito não sabia exatamente como se despedir.

Foi em minha direção como se fosse beijar meu rosto. Resistiu. Assenti. Não havia necessidade, não para ele. 

Não para o Rei de Espadas.


- Contos da Jornada da Conquista, A dança das Lâminas - Epílogo.


Obrigado Bruxa, sempre nos auxiliando com suas cartas e sua magia sutil.


segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O Enforcado (ou Carta XII)


"O mundo está ao contrário e ninguém reparou"
Relicário, Nando Reis






Apertou a tecla. Uma, duas, três vezes. Respirou fundo e tentou pensar se havia alguma forma de arrumar. “Deve ter”, pensou. Desmontou o teclado, tirou o cabo que ligava ao notebook. Assoprou, cutucou a tecla com um palito de dente. Percebeu um grampo de cabelo caído no chão, ao lado do sofá – não havia mulheres na casa e um grampo de cabelo ali era bem estranho, mas quem sabe pudesse servir para alguma coisa. Usou o grampo e voltou a cutucar.

Nada.

Decidiu que não iria desanimar, tentou limpar mais um pouco e soltou uma borrachinha que havia logo abaixo da tecla, tentou limpar mais um pouco. Assoprou e percebeu um pelo branco (provavelmente do seu gato), tirou ele dali com certa dificuldade e ligou o teclado novamente e foi pegar um copo de água enquanto a máquina reiniciava. Não funcionou. Apertou mais algumas vezes a tecla, tentou fazer a letra sair, sem sucesso algum.

 “A letra ‘d’”, pensou, “’d’ de desespero”, sorriu ao pensar isso. Lembrou-se de uma conversa mais cedo: “Desafio” seu amigo havia lhe dito mais cedo em uma conversa sobre o tarot, especificamente a carta Enforcado. Sorriu ao pensar nisso. Já havia tentado escrever sobre ele... embora tivesse uma certa dificuldade. Entender como ele funcionava e de que maneira poderia ser positivo o havia impulsionado em uma pesquisa pela internet, mas era complicado entender toda a sua nuance lendo as interpretações que outras pessoas davam.

Exceto talvez pelo desafio. Talvez fosse a melhor definição.

Colocou o notebook de volta no lugar, deitou-se no sofá e escolheu alguma música lenta em seu celular (o que particularmente não era difícil de encontrar). Respirou fundo e imaginou o Enforcado em sua frente, pendurado em uma árvore com uma leve brisa a balançar seus ondulados cabelos. Olhou para ele e tentou decifrar o que poderia lhe entregar de mensagem, mas tudo o que sentia era a sensação de prisão. Ainda na imaginação, sentou-se na grama e ficou a contemplar, até que percebeu a auréola ao redor da cabeça dele, o rosto sereno e os olhos fechados, enquanto permanecia imóvel. O mundo para ele estava de cabeça para baixo, mas o sangue do seu corpo não descia para a cabeça e não havia desespero para sair da posição. Calmaria.

O mundo de cabeça para baixo e calmaria.

   ificul  a  e.

   esespero.

   esafio.


   epen  ura  o.



terça-feira, 6 de setembro de 2016

A Imperatriz (ou Carta III)

Cetro, escudo, colo.




Era uma vez em uma torre distante, em um reino muito próspero, uma belíssima imperatriz. Sua gentileza era sua espada, seu sorriso o seu escudo. Um dia entretanto, o seu querido Imperador decidiu partir para nunca mais voltar – não queria mais permanecer preso em um castelo enquanto havia um mundo todo a ser explorado, um pássaro não deseja a gaiola.

A Imperatriz então chorou quando o viu subir no corcel e em uma cavalgada rápida entrou na floresta, sem em momento algum olhar para trás.

Pelos próximos dias, sem que ela quisesse ou alguém que os impedisse, cavaleiros de todos os reinos adjacentes vieram cortejá-la. Dezenas deles, que se amontoavam durante o almoço e tentavam desmerecer uns aos outros, gritando e esbravejando conquistas. A Imperatriz ouviu uma das serviçais dizer “parecem pavões agindo como hienas” e então percebeu o quanto aquilo tudo era cansativo e precisava de uma solução – ao menos antes que destruíssem o castelo.

Lembrou-se de uma velha amiga que morava em uma caverna não tão longe. A Imperatriz impediu que ela fosse morta pela fúria dos moradores da vila e então ela lhe devia um favor. Decidiu cobrá-la.
Organizou uma comitiva pequena e colocou-se a subir pelo rochedo até a caverna. O caminho era cheio de pedras, por duas vezes um dos membros perguntou à Imperatriz se era necessário correr esse risco. “Se fosse o Imperador aqui ele não insistiria na pergunta”, medo da segurança de sua senhora, ele lhe disse. Pensou que fosse melhor ignorar.

Ao chegar no fim da subida, uma caverna de entrada estreita que admitia apenas uma pessoa por vez e de cabeça abaixada. Ao olhar de fora para dentro da caverna, via-se um ponto brilhante que se movimentava de um lado para o outro rapidamente. A Imperatriz então tirou o capuz em sinal de respeito e entrou.

- Veja bem, uma ilustre visitante.

Cumprimentou a pequena criatura como as damas faziam.

- Narbe, faz um bom tempo. – Virou-se e pegou um pequeno embrulho das mãos de um dos serviçais. – Um pequeno presente.

A fadinha voou satisfeita e excitada, foi até o embrulho e retirou um minúsculo pedaço de  pano, todo trabalhado em fios finíssimos de ouro e com pedrinhas brilhantes por todos os lados.

- Magnífico! A espera pela sua volta até que não foi em vão não é? – E jogou nos ombros, ao redor do pescoço.

- Venho trazer um pedido minha velha amiga.

- Nada que envolva sangue ou dragões espero...

A Imperatriz sorriu nervosa.

***


Narbe sobrevoou o vilarejo, os que a viram gritaram e correram em desespero. O pânico se instalou nos corações das pessoas e alguns partiram em disparada na direção da floresta. A Imperatriz surgiu no portão do castelo caminhou firme e calmamente até o centro da vila.
Narbe pousou atrás dela e rugiu.

- Não temam população de Somewhere, ela está aqui para nos defender dos usurpadores e mentirosos que desejam o trono.

Aos poucos as pessoas foram se acalmando, enquanto que os bravos cavaleiros saíram do castelo com espadas em punho, alguns em cavalos, outros correndo aos gritos (a maioria corria e gritava, mas na direção oposta ao dragão).

Um rugido maior, o fogo os atingia e então em um suspiro, já não eram ameaça.

***

“Há uma história sobre uma Imperatriz que vive em uma cidade nem tão distante daqui. Dizem que seu coração foi estilhaçado pelo homem que a amava e isso a levou a atrair um grande dragão que passou a amá-la e protege-la. Dizem que o dragão em todo o seu poder destruiu os mais valentes cavaleiros dos reinos ao redor. Havia sangue, fogo e destruição e as pessoas amedrontadas fugiram da cidade e hoje a Imperatriz vive só, com seu dragão como companhia, à espera de um salvador.”

Amarílis ouviu atentamente, enquanto amamentava seu filho. Como não era sempre que um trovador passava por aqueles lados, quando algum chegava tudo acabava em festa e bebedeira. Seu marido não permitia que ela ficasse nas festas que se seguiam, mas ela se impunha e deixava claro que ninguém lhe diria o que fazer e nesse dia era a única em meio aos homens ao ouvir a história.

- Deve ter mais teia de aranha que lá em casa! – Gritou um dos homens e todos riram enquanto o trovador bebericava um pouco mais sem esboçar nenhum sorriso de escárnio.

Ele se levantou para pedir um pouco mais de vinho e Amarílis se aproximou rapidamente, antes que algum bêbado tomasse a atenção novamente do homem.

- É real? Digo, a história é real?

- E se for? – Olhou a mulher de cima a baixo.

- Se for, você disse que as pessoas da vila fugiram e que ele matou apenas os cavaleiros. Ora, ele não é um perigo para ela, não precisa de um salvador.

- Tem razão milady, mas não estava falando de um salvador que matasse o dragão, mas sim que a salvasse dela mesma. – Saiu cambaleando.

Pensou um pouco, cobriu o filho e foi para casa. Esquentou a água para as crianças tomarem banho, aprontou as refeições. Depois que foram dormir fez bolo e pão para que comessem no outro dia. Seu marido entrou cambaleando, caiu dormindo na cama e escorregou para o chão. Deixou tudo pronto e foi deitar.

Ao amanhecer, Amarílis já estava de pé e esperava montada em um cavalo próxima à estrada que levava para uma das cidades grandes próximas. Não tardou para o trovador aparecer preparado para partir da vila.

- Homem, para que lado fica a cidade da Imperatriz?

Ele a olhou de novo de cima a baixo e percebeu que qualquer palavra que dissesse seria rebatida. Imaginou a mulher o seguindo e espalhando-se a fama de que ele era ladrão de esposas. Já não bastava combater a fama de covarde quando fugiu do dragão, não precisava de mais uma – gostava muito dos pãezinhos quentinhos e do vinho e essa mulher que aparentava ser louca não iria tirar isso dele.

- Norte, até a Floresta que Fala. À esquerda, depois acompanhe o rio. – Bateu os calcanhares com força no cavalo e correu dali.

Voltou-se para o norte, iria passar novamente perto de sua casa e talvez parasse para ver se estava tudo bem, depois seguiria viagem. À medida que voltava lentamente para casa foi se sentindo mal pelos seus filhos que ficariam ali com aquele homem semi selvagem, começou a pensar se não era melhor abandonar a ideia de ir embora, suspirou.

Quando avistou sua casa, viu o homem com quem se casara jogar seu filho mais velho para fora da casa, e aos berros perguntava sobre ela, onde estava e acusava o menino de estar protegendo a mãe. Caído no chão, chorando em desespero a criança tentava dizer algo que era abafado pela irmã que gritava desesperada e em meio à confusão, o menino de colo também começou a chorar.

O homem pegou o machado e foi se aproximando do menino, enquanto os vizinhos saíam da casa e observavam a bagunça se instaurando. O homem dizia, mais para as pessoas ao redor do que para a criança, que iria fazer com que ele se tornasse um homem ao invés de ficar protegendo mulheres que não mereciam. Amarílis desceu do cavalo e pegou a espada que era de seu pai e foi correndo na direção dos dois. Aos berros o homem disse:

- Vou te ensinar a não ser uma maricas que fica embaixo da saia da mãe. – Ergueu o machado.

Um grito agudo de dor, e o homem caiu de joelhos no chão, atrás de si o machado caído e próximo à ele, suas duas mãos inertes. Continuava a gritar, mas não se sabia se por dor ou por desespero ao ver o cotoco que dava lugar às mãos.

Rapidamente Amarílis pegou os filhos, algumas roupas e amarrou a carroça ao cavalo: sabia o que estava por vir, os homens da vila iriam matá-la para que servisse de exemplo. Partiram com pressa para o norte.

***

Pararam para descansar na Floresta que fala, acendeu a fogueira depois de muito esforço e deu um pouco de comida para as crianças enquanto pensava de que forma iria conseguir mais.

- Meninos... a mamãe vai descansar um pouco, apenas um pouquinho, fiquem por perto está bem? – Abraçou o menino de colo e fechou os olhos.

Não percebeu quanto tempo havia passado, e se assustou com um rugido alto; um fogo alto que atravessava as árvores a fez olhar na direção que provavelmente o dragão estava e ouviu o grito de sua filha. Correu pelo mato até ela, tomando o devido cuidado para não machucar a criança no colo e a abraçou com força, enquanto encarava o dragão e a provável morte que viria a seguir.

A menina, embora com muito medo e com a cabeça enfiada em meio aos cabelos da mãe, estendeu sua mãozinha com as flores que havia pego pela floresta. E cheiravam tão bem!

Narbe paralisou diante da cena. Não havia nada sobre matar crianças que lhe oferecessem flores no trato feito com a Imperatriz. Bem, então que assim fosse feito.

Voltou para a forma de fada.

- Ahn... perdão, essa doce garotinha me assustou!

Sem entender, Amarílis se surpreendeu com a pequena.

- Vocês precisam de algo?

Tentando se recobrar do susto, a única coisa que conseguiu dizer foi: “Comida.”

Narbe então começou a tagarelar enquanto mostrava um caminho para a família seguir e ao perceber que não estavam logo atrás e pareciam catatônicos, disse com as mãos na cintura: ”Estão ou não com fome?”

O garoto que estava no mato observando veio junto à mãe e aos irmãos e passaram a seguir a fadinha que falava sobre diversas coisas, em tom alegre e radiante. Ouvi-la trazia a mesma sensação de sentir o sol matutino tocar a pele.

Passaram por uma cidade abandonada, e seguiram rua à cima na direção do castelo.

A fada abriu as portas e ali, sentada ao trono, a Imperatriz mantinha-se com um rosto triste. Amarílis fez uma referência que não foi notada, enquanto Narbe dizia algo sobre procurar o que comer.

***

Os dias foram passando, a doçura das crianças foi quebrando a tristeza em que a Imperatriz havia decidido para si. Amarílis cuidou do castelo como pode, mantendo a ordem e limpeza ao menos nos cômodos que mais usavam.

Lentamente a Imperatriz passou a sorrir, enquanto que cada vez menos Narbe ficava na forma de dragão sobrevoando as redondezas.

Se sentia feliz ao ver como a Imperatriz agia perto de Amarílis e foi percebendo que algo estava acontecendo. Sentia uma pontada de felicidade e ao mesmo tempo tristeza... em breve iria partir.

***

“Há uma história sobre uma Imperatriz que vive em uma cidade nem tão distante daqui. Dizem que seu coração foi estilhaçado pelo homem que a amava e isso a levou a atrair um grande dragão que passou a amá-la e protege-la. Dizem que o dragão em todo o seu poder destruiu os mais valentes cavaleiros dos reinos ao redor. Havia sangue, fogo e destruição e as pessoas amedrontadas fugiram da cidade, e por muito tempo a Imperatriz viveu só.

Mas um dia uma mulher chegou com três crianças de grande poder e contra essa família o dragão nada pode. Foi um grande alvoroço quando elas decidiram por um casamento, atraindo para a cidade toda sorte de pessoas que sofriam nas mãos de gente impiedosa. Um grande refúgio para aqueles que precisam”

- E o dragão? – Perguntou um menino enquanto segurava a mão de seu namoradinho.


- Ah sim, o dragão... vive por aí completando algumas histórias mal contadas por uns covardes falastrões.