segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O conselho da Sacerdotisa



  
http://cap3la.blogspot.com.br/2016/10/a-sacerdotisa-ou-carta-ii-parte-1.html
http://cap3la.blogspot.com.br/2016/10/oracao-n-3-7-sacerdotisa-parte-2.html
http://cap3la.blogspot.com.br/2016/10/oracao-n-3-3-de-espadas-sacerdotisa_10.html

  



  
- Pois bem, 3ª a ser visitada, estamos melhor posicionados dessa vez não é?

- De alguma forma – Respondeu cabisbaixo.

Ela ou ele, virou-se e entrou pelo portal com a certeza de que seu visitante acompanharia e ainda que ele tivesse pensado em dar meia-volta, decidiu por seguir adiante.

- Sempre será assim, logo que chega já quer ir?

- É difícil olhar para dentro.

- Você acha?

- Em muitos momentos sim.

- São nesses momentos, quando nos voltamos para nós, é que algumas coisas passam a fazer sentido.

Caminharam pelo chão quadriculado enquanto um silencio ansioso tomava conta do ar ao redor deles. A Sacerdotisa percebia, mas de alguma forma não se importava, e não é que ela aparentava não se importar, ela de fato não era afetada.

Sentou-se na cadeira com estofado azul-marinho aveludado e fez gesto para que ele se sentasse em frente a ela. Sobre a mesa, um bule exalava doce perfume de chá de camomila, do qual se serviu o visitante satisfeito. Ela então pegou o Livro dos Espelhos em suas mãos e olhando para ele como se o analisasse com certa diversão, abriu e folheou.

- Escreveu mais algumas coisas antigas. Sem ordem cronológica. Fatos que te perturbam?

- Não sei dizer.

- Não, não sabe. – Afirmou abruptamente. – Não contou então sobre a queda do Louco. Usou artifícios, usou Alice. Mas não contou sobre o significado da Morte.

- Não sei se entendi sobre ela. Acredito que não.

- Você não entendeu muitas coisas.

- Muitas. – Bebeu do chá.

- Mas a mim parece que sim.

- Sim, por um triz.

Sorriu satisfeita e parou na última página escrita.

- A história pela metade. A tentativa de se consertar erros do passado. A ansiedade para não voltar a cometer erros. Olha-se para dentro e apenas para dentro e não confia na intuição, pois sobre isso ela é uma cega que tateia onde não há paredes. E se segue, no escuro, sem apoio. E segue.

- E segue.

Olhando para ele voltou algumas páginas.

- Um breve encontro com a carta do Diabo novamente, agora sob novo aspecto e também decidiu por não escrever.

- Não era hora, não estava preparado.

- Não, não estava. – Assentiu.

- O Louco, a Morte, o Diabo. Que tríade não é? E agora está aqui ao invés de pedir socorro à Temperança.

- Estou onde tenho que estar.

- Mesmo não querendo. – Ela sorriu como se chegasse onde queria.

- Respire fundo, olhe como se estivesse do lado de fora. Você está do lado de fora. Você não sabe as intenções deles, eles não sabem um do outro. O que fazem?

- Se protegem.

- Alguém cederá? Alguém perderá a carapaça? Alguém está enganando? Alguém está mentindo? Haverá dor? Um irá sofrer? Quem irá sofrer? É melhor atacar antes? Atacar é a melhor defesa? E agora o que fazer?

Fechou os olhos permitindo que o medo tomasse conta do seu coração.

- Medo? – Virou as páginas e lhe entregou o Livro.


- Por que insiste? – Perguntou-lhe olhando profundamente.

- Não sei...

- Você já não disse adeus?

- Eu...

- Por isso temos história, por isso sobrevivemos à elas. Por isso escrevemos. Para nos lembrar.– de onde estava virou novamente as páginas do Livro.


Olhou para ele, ainda arqueada com o dedo na página da Força.

- Desta vez, e apenas desta vez, lhe darei algo para pensar e se lembrar. – Tomou-lhe o livro das mãos e anotou algo em uma das páginas, devolvendo.


Vossa razão e vossa paixão são o leme e as velas de vossa alma navegante. Se vossas velas ou vosso leme se quebram, só podereis derivar ou permanecer imóveis no meio do mar. Pois a razão, reinando sozinha, restringe todo impulso; e a paixão, deixada a si, é um fogo que arde até sua própria destruição.

Que vossa alma eleve, portanto, vossa razão à altura de vossa paixão, para que ela possa cantar, E que dirija vossa paixão a par com vossa razão, para que ela possa viver numa ressurreição cotidiana e, como a fênix, renascer das próprias cinzas.
Khalil Gibran



- Leve o livro, continue em frente e não se esqueça o que há dentro, e aquilo que foi e não será mais, lembre-se de suas decisões pois não é mais vítima de infortúnio alheio e sim de si mesmo, e por hora isso deve acabar.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O que falta ao Mago?

Obrigado pela inspiração lobinha.


http://cap3la.blogspot.com.br/2015/11/o-mago-ou-carta-i.html



A equilibrista atravessa de um ponto a outro segurando um bastão que lhe auxilia, de um lado uma bola de chumbo e do outro uma pluma, e ela seguia firme e sem sorrir, concentrada sobre o seu objetivo e como chegará lá sem cair.

Um homem com cartola na plateia observa atento, com sua íris negras analisando cada detalhe da apresentação, em sua mão uma bengala com um grande rubi, por dentro da capa uma adaga ornamental com desenhos em russo, na outra mão uma taça de vinho que não se sabe de onde tirou.

Bebericou levemente sem tirar os olhos da equilibrista.

Ao seu lado, seu assistente de palco.

- Ela está indo bem não acha?

- Como poderia?

***

Sentou-se diante do espelho para tirar a maquiagem, que era diferente a cada apresentação e dependia de seu humor. Não percebeu a entrada do homem até que o viu no reflexo do espelho. Virou-se assustada e ficou com a boca entreaberta quando viu que ele segurava o bastão com a bola de chumbo na ponta.

- Um belo truque.

- O que você quer?

- Entender como você se equilibrava daquela forma. Claro, não haveria outra forma.

Ela se levantou e com alguns passos tirou o bastão das mãos dele, lhe dando as costas e sentando novamente em frente ao espelho, encostando o bastão na parede ao lado.

- Uma bola falsa.

- Tão falsa quanto sua barba mal colada.

Ele riu e levou a mão ao rosto, retirando a barba e a cartola que revelou um longo cabelo negro.

- Perspicaz você.

- Não se sobrevive se não for esperta o suficiente.

- Imagino que estar sentada de costas para um estranho não te causa medo.

- Uma estranha. – Corrigiu a garota. – E não vejo motivos para medo.

Tirou o restante da maquiagem.

- Você é um homem bonito. – Disse a maga.

- Preferem mulheres. As pessoas se espantam com habilidades físicas quando são feitas por um homem.

- Não me diga – Engrossou a voz como se fosse um homem, e disse em tom de chacota – Mulheres não servem para muita coisa.

Pelo espelho o equilibrista olhou para ela em tom sério.

- Seja franco, ou franca. Sua máscara é esse rosto sem maquiagem. Você na verdade é quem estava lá em cima. Por que não assume a mulher que é de fato?

- Não tenho motivos, não há bíblia que me sustente, altar que me oriente e santo que me faça diferente...

A maga então apontou para cima.

Para o Grande Mistério nada é impossível.

- É este o seu nome para se apresentar?

- É sim. – Ela sorriu.

- É péssimo.

- É funcional.

- O que vem a seguir? Um pedido de casamento?

- De certa forma. Por que não vem comigo?

- Para que precisaria de mim?

- Nenhum mago é bom o suficiente enquanto não tem uma bela mulher para auxiliá-lo.

- E eu tenho cara de ajudante agora?

- Na verdade, tem cara de quem não soube tirar toda a maquiagem. Mas comigo não irá precisar tirá-la.

- Você tem cara de quem não sabe colar uma barba. Tem uma proposta melhor do que me cerrar ao meio ou me deixar girando enquanto atira facas em mim?

- O que propõe?

- Parceria. Me ensine algumas coisas, te ensino outras. Fugimos.

- Para onde?

- Para o Grande Mistério. – Apontou para cima.



E o acordo foi feito com o riso dos dois.

Mas...


sexta-feira, 26 de maio de 2017

A queda do Louco

O Louco se joga porque há um precipício ou há um precipício por que o Louco se joga? 

- Vamos pular bebê?
- De novo?
- Sempre.


Estimado Livro do Espelho,

                Me lançarei mais uma vez por terras desconhecidas, em busca daquilo que mais preciso e que não se resume a uma pessoa ou desejo ou qualquer – e tudo – aquilo que é material. O início de qualquer viagem me faz sentir os joelhos tremerem como quando era uma criança à espera da primeira aula.

                Mas com esse livro, com essa lanterna, com essas pílulas em meu bolso, talvez seja mais fácil e mais calmo. Ou estou apenas tentando me enganar, mas tenho certeza que será no mínimo divertido.

                Quando olho para trás percebo que muitas situações se configuraram para que eu pudesse estar novamente à beira do abismo, ou olhando para um grande espelho que posso atravessar.

                Vamos correr atrás do coelho, vamos nos jogar em um buraco sem fim e vamos encontrar um novo mundo. Vamos beber da pequena garrafa, vamos comer do bolo, vamos fazer uma lagoa de lágrimas, vamos tomar chá com o Chapeleiro e conhecer o gato Risonho e quem sabe fumar narguilé com a Lagarta azul e tentar não perder a cabeça com a Rainha de Copas.

                Avante e sem conhecer o caminho, com uma mochila cheia de histórias, com todas as cicatrizes do coração e um olhar determinado.

                E uma lanterna para iluminar o caminho, e um livro para escrever tudo o que conhecerei.


Ou o poço era profundo demais, ou ela caía muito devagar, pois teve tempo de sobra durante a queda para olhar em volta e perguntar-se o que iria acontecer em seguida. Primeiro, tentou olhar para baixo, para ver aonde estava indo, mas estava escuro demais para ver qualquer coisa: então, olhou para as paredes do poço e notou que estavam cheias de armários e prateleiras: aqui e ali viu mapas e quadros pendurados. Enquanto passava, pegou de uma das prateleiras um pote: tinha o rótulo “GELÉIA DE LARANJA”, mas para seu desapontamento estava vazio: não quis jogar fora o pote, com medo de acertar mortalmente alguém lá embaixo, então, esforçou-se por colocá-lo de volta em uma das prateleiras enquanto passava.
“Bom”, pensou Alice, “depois de um tombo desses, não vou achar nada demais cair de uma escada! Todos lá em casa vão pensar que fiquei muito corajosa! Não lhes vou contar nada, mesmo se cair do telhado!” (O que era bem possível que acontecesse.)


Caindo, caindo, caindo. Esta queda não acabaria nunca?

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Oração nº 5 e 6 - Ao Cavaleiro de Copas e ao Rei de Copas

Atravessei uma terra vazia
Eu conhecia o caminho como a palma da minha mão
Eu senti a terra sob meus pés
Sentei-me junto ao rio e ele me completou

Oh! Coisa simples, aonde você foi?
Eu estou ficando cansado e preciso de alguém em quem confiar

Me deparei com uma árvore caída
Eu senti os galhos dela olhando para mim
É este o lugar que costumávamos amar?
É este o lugar com que tenho sonhado?

Oh! Coisa simples, aonde você foi?
Eu estou ficando velho e preciso de algo em que confiar

E se você tiver um minuto por que nós não vamos
Falar sobre isso num lugar que só nós conhecemos?
Isso poderia ser o final de tudo
Então por que nós não vamos
Para algum lugar que só nós conhecemos?
Algum lugar que só nós conhecemos

Oh! Coisa simples, aonde você foi?
Eu estou ficando velho e preciso de alguém em quem confiar
Então me diga quando você vai me deixar entrar
Eu estou ficando cansado e preciso de algum lugar para começar

E se você tiver um minuto, por que nós não vamos
Falar sobre isso num lugar que só nós conhecemos?
Porque isso poderia ser o final de tudo
Então por que nós não vamos
Para algum lugar que só nós conhecemos?
Algum lugar que só nós conhecemos






Pegou o candeeiro da bolsa para iluminar a caverna onde havia entrado e o acendeu com cuidado. Pelas paredes desenhos que pareciam ser feitos por uma criança – e cobriam toda a extensão da caverna. Pareciam representar momentos de duas pessoas, sempre nas cores azul e vermelha e em alguns momentos da história contada podia-se ver outras figuras desenhadas com uma cor preta e estas lembravam sombras, fosse pela posição em que estavam, seja pela forma como interagiam com os dois. De maneira geral pareciam felizes um com o outro, sempre juntos e em alguns momentos de mãos dadas.

A luz que saía do candeeiro e iluminava a parede mantinha um foco sempre para frente, mas sem que o homem se virasse, a luz foi lentamente deslocando-se para esquerda e focalizou na parede que estava atrás dele. E os desenhos ali já não eram tão felizes, pareciam tentar transmitir momentos de solidão dos dois, afastamento, lágrimas.

A luz continuou sua evolução para a esquerda, até que iluminou um garoto de pele branca e cabelos lisos.

- Oi – ele disse.

***

- Então esses desenhos são sobre vocês dois e o que viveram aqui.

- Sim. – Disse com uma certa mágoa na voz.

- E onde ele está agora?

- Aqui – Apontou para o coração.

Caminharam para dentro da caverna até encontrar uma pedra que lembrava um banco e sentaram-se.
- Sinto falta dele.

- Ele deve sentir a sua falta também.

- Acho que não, ele decidiu sumir.

- Talvez ele precisasse. – E o garoto fez sinal que sim e não disse nada. – Vocês brigaram?

- Mais ou menos.

- Por que não foi atrás dele?

- Eu estava ocupado demais brincando.

Olhou ao redor e não viu nenhum objeto que pudesse ser usado como brinquedo.

- Brincando com o que?

- Com as sombras.

Seguiu-se um longo silêncio.

- Quer que te ajude a encontra-lo?

- Pra isso vou ter que sair daqui.

- Então vamos sair, eu te levo.

- Ele me disse isso também.

- E por que você não foi?

- Por que quis ficar aqui, é o que conheço, é o que construí para mim. Não sei o que há lá fora.

- Por isso ele foi embora? Por você não querer ir com ele?

- Não.

- Foi por qual motivo então?

- Ele ficou aqui tempo demais, esperou tempo demais...

- E por que ele ficou aqui com você?

- Eu dizia que queria sair da caverna...

- Mas você não queria?

- Não.

- E ele acreditou em você?

- Sim.

- E quando ele percebeu que você não tinha a intenção de sair?

- Todas as vezes que eu deixava as coisas acontecerem, todas as vezes que ele me pegava pela mão... eu corria.

- Para onde?

- Para as sombras, ficava brincando com elas.

- E ele?

- Ele chamava meu nome no meio do escuro, me procurava tateando por aí.

- E você não foi ao encontro dele quando ele te chamava?

- Não.

- Por que?

- Tenho limitações, restrições... e as sombras estavam comigo.

- As sombras te faziam feliz?

- Não. Mas era o que eu conhecia.

- E você não preferia conhecer ele?

- Não sei dizer... mas ele foi se mostrando aos poucos e mesmo sem saber fui conhecendo.

- E ele foi te conhecendo também?

- Sim.

- Por que ficar com as sombras ao invés dele então?

- Ele queria muitas coisas e eu tive medo.

- Que coisas?

- Ir lá para fora.

- E valeu a pena?

- Ter conhecido ele?

- Ter preferido as sombras?

O garoto se levantou e olhou ao redor, enquanto o foco da lanterna fez uma nova evolução, mostrando as duas paredes. As alegrias, as brincadeiras, as besteiras, os abraços, os toques, a presença; as lágrimas, as mágoas, o abandono, as dores.

- Não sei dizer.

- Você sente a falta dele?

- Muito.

- O suficiente?

- Sim.

Então o homem se levantou.

- Te levo a ele.

- Não posso.

- Por qual motivo?

- Vai ser diferente de tudo o que eu conheço e não sei o que vou fazer.

- Diferente de que forma?

- Ele me ama.

Essa frase parecia causar grande confusão ao garoto.

- E você?

- Não sei.

- Não sabe se o ama?

- Não sei o que significa amor.

O homem sorriu bondoso, passou a mão na cabeça do garoto.

- Amar significa muitas coisas, inclusive se doar. Uma vez, em um deserto distante daqui, eu conheci um garoto de cabelos loiros e ele também não sabia o que significava amar. Deixou sua rosa para trás e viajou por muitos lugares para tentar descobrir o que significava e encontrou uma raposa que o ensinou coisas muito importantes sobre isso.

- O que ela ensinou?

- Que nós temos responsabilidade com aqueles que nos amam.

- Mas eu não quero, eu tenho minhas limitações e minhas restrições. Outras pessoas passaram por aqui, elas me empurraram para dentro da caverna e fecharam a entrada. Não posso sair.

- A saída está aberta, eu entrei por lá.

- Mas não posso deixar minhas sombras para trás, elas são importantes. Me ocupam durante todo o dia e às vezes me afagam se oferecendo a mim.

- Então você está bem sem ele?

- Não. Quero ele aqui comigo.

- E por que ele não está aqui?

- Por que aqui não é o lugar dele. O lugar dele é lá fora embaixo do luar e eu sei que nada irá impedi-lo de ficar no lugar que é dele.

- E aqui é o seu lugar?

- Não sei. Deve ser. Fiz daqui o meu lugar. – Escorreu uma lágrima.

- O que você realmente quer?

- Que ele me tire daqui.

- Vamos tentar uma coisa?

- Não sei. Não sei se posso confiar em você.

O homem ergueu o candeeiro na altura do próprio rosto.

- Prometo que você terá o que precisa. Mas não prometo que conseguirá o que deseja.

O garoto olhou ao redor, para todas as sombras que se formavam em volta de si e com um sussurro elas diziam o quanto ele deveria ficar ali, o quanto eles tiveram momentos especiais e o quanto elas estavam com ele e se embrenhavam nele e eram ele. O candeeiro emitiu uma luz forte que as dissipou instantaneamente – afinal, elas tinham a importância que o menino lhes dava – olhou para o homem e com uma expressão de medo, quase terror.

- Depende de você.

- E se tudo der errado?

- Te trago de volta.

- Promete?

- Sim.

***



Tirou as vendas dos olhos e encontrou seu maior terror: o mundo do lado de fora da caverna. A floresta ao redor e todos os barulhos e tudo aquilo que ele não conhecia e que poderia saltar para fora da mata e pegá-lo. Virou-se para abraçar as pernas do homem e quando olhou para o rosto dele e pronto para pedir para retornar, viu o céu estrelado e a lua cheia que brilhava com força. Soltou devagar o homem e ficou encantado com tantos pontos brilhantes em um véu negro que se estendia além dos limites, das restrições. O infinito era realmente imenso, assim como a escuridão também é, mas ao contrário desta o céu não prende e não sufoca. Era lindo e maravilhoso. Deu as costas para o homem enquanto olhava para a lua.

- Oi – Disse o outro garoto, que segurava o candeeiro e estava ali no mesmo lugar que o homem.


- Você...




quarta-feira, 19 de abril de 2017

O Mundo (Ou Carta XXI)




A última, o fim, o grand finale. Gira em torno de si mesma enquanto lança suas mãos ao ar, fazendo lentos movimentos como se criasse o mundo – dança sem que mais nada importe. Encerra em si, as cortinas se fecham... e se abrem para o bis.

Toca docemente meu rosto, em uma sintonia virtuosa que diz sem palavras: é chegada a hora.

E todos eles dançam ao redor como quadros que observam a finalização, cientes de cada contribuição.

O Mago tira sua cartola, e solta seus cabelos enquanto balança a cabeça com força, jogando o bigode para longe. Diante de si todas as ferramentas que gentilmente cedeu para a caminhada. Tudo à disposição, mas que fique claro que a autossuficiência é um engano se não aceitar os desígnios dos céus. Ela aponta para cima como se indagasse algo.

A Torre flutua sendo atingida por um raio, lançando duas pessoas para fora; e logo depois essas mesmas pessoas a reconstroem. Vem então um terremoto e tudo se repete. E então vem o fogo. E então vem o mar. E a pessoas a reconstroem – afinal, a Torre existe e virá de qualquer forma, arrasará nossas frágeis e ineficazes paredes para que permaneça apenas aquilo que precisa permanecer. Um relâmpago brilha ameaçador antes de atingir a construção novamente.

Ela se vira com o rosto ansioso e me olha fixamente – atrás dela dois homens se colocam para a derradeira escolha, cada um com características tão distintas que é impossível tentar racionalizar a questão. O cupido, o grande e incansável Enamorado se coloca com a flecha apontada e quando atira um anel de casamento cai das mãos dela. A escolha por aquilo que apela nosso coração exige certos sacrifícios. Mas toda escolha exige sacrifícios.

No próximo quadro, brilha a Lua com força e ela reflete as roupas prateadas da Grande Avó que, com um sorriso gentil, traz toda uma gama de sombras que se lançam a partir da sua imagem – lembrando que às vezes os caminhos se confundem e que a dúvida e o medo do escuro são naturais, mas basta olhar para ela, basta acostumar os próprios olhos ao jogo de sombras bruxuleantes. Atrás dela, a areia remexida aguarda o retorno.

A luz quase me cega, mas aos poucos me acostumo. Um fauno pula de um lado para o outro enquanto dois jovens nus estão deitados lado a lado comendo uma maçã, e sorriem enquanto se divertem com algo que apenas os dois conseguem entender. Ao alto do quadro o Sol vai de lado a outro, do amanhecer até quase escurecer, para então voltar pelo mesmo caminho. Ao contrário do quadro, eu sabia que nenhum sol dura para sempre – assim como nenhuma lua. Mas devemos valorizar nossos momentos de felicidade, tanto quanto os momentos de confusão.

A noite se mostra aveludada e um certo temor se apodera de mim quando na parte inferior do quadro vejo destroços daquilo que seria a Torre, e as duas pessoas a chorarem. Um brilho tímido surge no céu e vai aumentando a intensidade enquanto os dois completamente nus limpam suas lágrimas. A Torre vem sempre para destruir aquilo que não serve e a Estrela surge no fundo da caixa tal qual a esperança – depois que todos os males foram libertos.

A balança pende para aquilo que mais pesa. Os atos, as palavras, os desejos... são plumas que caem uma a uma nos pratos, cada atitude e cada pensamento tem seu próprio peso – o quanto deve pesar então uma pessoa por completo? Colocamos ali tudo a que se refere a nós e ela julga, mostra para qual lado o que fazemos pesa, e então colhemos.

Uma mulher negra se levanta e com a postura ereta e o corpo determinado quase se projeta para fora da moldura. Com a lança em punho e com os desenhos africanos da guerra pelo corpo ela se apodera da força que tantos dizem ser masculina – ela é a caçadora, ela trará o alimento, ela proverá, ela conquistará, ela subjugará. Contemplo então como é possível apoderar-se do arquetípico, e sem muito tempo para refletir, ouço um grito de guerra que enche meu coração com coragem e determinação. Sabia então que estava pronto para a peleja.

O samurai comete o harakiri e sinto a dor em meu estômago, olho para baixo e vejo minhas mãos segurando firmemente a katana que me atravessa o corpo. Minha visão fica turva enquanto o sangue jorra da minha boca. Tudo enegrece. Olho para meu corpo caído e quando ergo a cabeça para o quadro ouço gritos de dor enquanto uma criança vem ao mundo. A Morte permeia em tudo, e em nós quando decidimos cortar e tirar de nós aquilo que não precisamos - não importa a dor dilacerante que se segue, mas sabemos que renasceremos.

A trombeta soa com força e então o samurai levanta se transformando em uma anciã, ao lado de uma mulher grávida e de outra, mais jovem que as três. Colocam-se a mexer no caldeirão que está na frente delas, transmutando tudo o que é colocado nele. Uma lagarta paira flutuando acima das três e então um casulo a cerca para logo depois se abrir e dali voar a borboleta que cuidadosamente pousa no instrumento de sopro segurado pelo anjo. Quando soa a trombeta somos chamados para a transformação, o anjo do Julgamento nos chama a refletir e evoluir.

A Imperatriz segura o cetro e o escudo do alto de seu trono. Cria, amamenta, cuida e tudo o que toca cresce e floresce, mesmo o mais frio e machucado coração. A mãe por excelência que é também a mulher sensual que tem em sua cama o homem que deseja. Ela se coloca no quadro como uma figura altiva, com a experiência e a sabedoria escrita em seu rosto, proporcionada pelo amor que nutre e abunda.

Uma árvore cresce do lado direito, próximo à moldura. Diante de meus olhos vejo o caule se formando e indo ao alto para no final terminar em um galho para então entrar em cena um homem que sobe na árvore, laça a própria perna e se pendura de cabeça para baixo. Ele cruza a outra perna formando o número quatro e seu rosto expressa uma serenidade infinita, de alguém que se coloca na posição e aguarda não ser salvo. Escolha própria se enforcar. Escolha própria permanecer assim. Mas seus olhos fechados talvez contestem essa verdade.

O Carro avança com seus cavalos, um negro e outro branco. Vejo o rastro que ele deixa, mas seu condutor não olha para trás, há muito o que avançar e se prender ao passado não trará progresso algum. Os animais puxam as rédeas cada um para um lado, o bem e o mal se misturam enquanto avançam quase indomáveis, mas o homem faz jus à coroa que carrega e grita seus nomes e os puxa de volta. Ele conduz.

Íris se vira lentamente para me contemplar. Um rosto sereno com variadas cores que quase saltam do quadro – em suas mãos dois cálices, o qual ela vira a água de um para outro. Vejo em seus lábios palavras se formando, sem som. “Só existe uma maneira de se viver para sempre, que é compartilhando a sabedoria adquirida e exercitando a gratidão. É o homem entender que é parte do todo: nem ser menos, nem ser mais, ser parte da natureza”.

O homem, ou talvez fosse mulher, surgiu por entre uma espessa névoa azulada e sem se deter em demonstrar o seu gênero mostrou um livro, um livro que me pertence. Nossas histórias nos definem e nossa memória é um grande apócrifo que conta o nosso nascimento à nossa crucificação, ressurreição e morte. A Sacerdotisa trás para nós aquilo que está em nós, basta olharmos para dentro, basta olharmos o espelho.

O velho balançou o candeeiro de prata e com um gesto bondoso me cumprimentou. Um velho amigo que saúda a minha passagem. Aceno de volta e nessa troca percebo claramente que agora é o nosso encontro final, pois ao partir desse quadro não serei mais o mesmo – mas não há espaço para lágrimas e despedidas, pois o candeeiro que ele balança é o mesmo que está comigo e não me esquecerei.

A Roda gira e quem estava em baixo vai aos poucos escalando, quem estava escalando chega ao topo, quem estava no topo escorrega ladeira abaixo, que antes escorregava agora encontra o fundo. E ela gira, gira, gira. Não pude conter o riso olhando para ela e me recordando a forma como chegou para mim. Agradeço pela presença, agradeço o momento, mas assim como ela, estou de passagem.

Olhou para o garoto sentado na cadeira com cordas caídas ao seu redor. Hora, não era o Diabo que tentara prendê-lo e mantê-lo no escuro? E ele agora sorria maliciosamente enquanto mantinha os pequenos pés a prender as cordas. Quem estava dominando quem, quando tivemos nosso encontro?

O Hierofante ostenta um olhar firme e agora ele sabe que algo foi feito. Outras coisas também foram feitas. De algum modo me sinto como ele, de algum modo me sinto como se estivéssemos em igualdade e isso causa uma certa ansiedade em meu peito. Uma despedida e uma boas-vindas.

O Leão rugiu e a mulher o abraçou. Ele que estava prestes a ataca-la nada pode contra os braços gentis que o envolviam e o carinho que recebia em sua juba. Deixou-se levar pela mulher, não pela imposição dela, mas apenas por querer assim. E ela controlou seus instintos animais, ela dominou sua fome, calou seus dentes quando estes queriam abocanhar e destruir algo. Eles tornaram-se apenas um.

***


Os quadros giraram rápidos ao meu redor até que se tornassem um borrão e então, girando, foram se elevando e diminuindo de tamanho, até se tornarem um arco que poderia caber em minhas mãos. Mas não estavam comigo.

Ele saltou fazendo acrobacias, cambalhotas e dando saltos mortais. Parou no meio do picadeiro, com a mão estendida como se oferecesse algo – mas não estava oferecendo – o arco que ainda estava a girar desceu e parou a uma curta distância da palma de sua mão. Ele então começou a dançar com mais acrobacias que antes, enquanto o arco girava ao seu redor, e os dois dançavam como se fossem velhos parceiros. Um pequeno cão apareceu latindo e pulando, na tentativa de pegar um dos panos que balançavam a partir das vestes do Louco.

O chão do picadeiro se escureceu e tudo ao redor passou a brilhar com pequenos pontos de luz. 

Demorei a perceber que eram estrelas e que então o Tolo e as cartas dançavam em frente a um planeta que pouco a pouco saía das sombras e se mostrava como quem não pede licença.

E sem aviso, tudo escurece.


***


Acordo nu, um cão me lambe o rosto. 
Me espreguiço e à minha direita um precipício. 
Começo a gargalhar enquanto caminho em sua direção.


quarta-feira, 8 de março de 2017

A Força (Ou Carta IX)



Levou o cigarro à boca para mais uma tragada. Olhava para o sol que lentamente se despedia de um dia de céu azul e sorria com os olhos diante da cena que esquentava a alma.

Dominar a si mesmo.

Refletiu por uns instantes sobre como o último ano o havia afetado e como se portava em vistas do início do novo caminho que se aproximava dele. Não havia sinais das mudanças que ocorreriam, mas em seu âmago a certeza era cada vez mais clara: chegara ao fim de mais um período (particularmente) adverso.

Desta vez, contudo, em meio às quedas e às dificuldades e obstáculos que se erguiam como muralhas de espinhos, sem passagem, sem escalada, apenas as dores do toque de agulha que as protuberâncias de metal a se projetarem diretamente para a pele, lembrou-se então daquilo que marcara em si mesmo – ad astra per aspera. E percebeu como havia passado pelo muro e como, de lá de cima do balão, ele parecia pequeno e inofensivo.

Mais um trago e soltou a fumaça observando como adquiriam contornos e formas, dissipando-se no ar.

***

“Quando o carnaval passar, quando o carnaval passar
Vamos dançar
Qualquer coisa é melhor que tristeza
Por favor
Se esqueça”

Levou a garrafa à boca e sentiu o gosto da vodka tocar suas papilas gustativas se estremecendo e então engoliu o líquido rapidamente. Sentia uma leve dormência em seus sentidos e uma letargia em seus pensamentos, mas fisicamente estava cada vez disposto.

Lembrou-se novamente de um velho amigo a dizer “as pessoas vão para se divertir, mas o lugar é tão ruim que só se divertem quando estão bêbadas, então saem para beber para se divertir. Imagine um lugar tão ruim que você não consegue estar ali se estiver sóbrio – então por que as pessoas vão até lá?”. De alguma forma era essa a sensação, mas por algum motivo a bebida naquele momento parecia ser apenas um toque a mais. Talvez pela senhora de 84 anos a se divertir com os indicadores apontados para cima e uma dancinha leve, ou talvez pelas crianças que brincavam ao seu redor jogando espumas por todos os lados, ou talvez pelas famílias que estavam ali e não se importavam de dividir o mesmo local com o morador de rua (que tantas vezes era ignorado e invisibilizado) que dançava quase no mesmo passo que a senhorinha e com a disposição das crianças – talvez esse conjunto e a disposição de todos ali para brincar e se divertir o fizessem se sentir à vontade, como não se sentia em qualquer espaço.

Não pensou em nada, se esqueceu dos problemas, dos questionamentos, das incertezas e até certo ponto, dos sentimentos. Um piloto automático que toma o controle mas não impede risos e diversões.
 Viu-se por instantes, em meio à tantas pessoas diferentes entre si, como um abençoado, na situação em que a água benta que batiza a criança, estava na garrafa com forte gosto alcoólico.

“Vou criar um lugar escondido
Pra fazer meu recital
Quando o carnaval passar, quando o carnaval passar
Quando esse escarcéu passar”

***

- Ele parece que te faz bem.

Essas palavras lhe socaram a boca do estômago, mas deveria ser assim, deveria deixar ir.

No fim não era tão diferente das outras histórias – sempre que se apaixonava antes, as coisas não evoluíam, como um golpe do destino, e mesmo as tentativas de fazer coisas interessantes e de fazer o outro sorrir ou se sentir feliz eram em vão, então o melhor era sempre permitir ir. Tirar do coração.

Mas algo diferente aconteceu, sua frustração diante da repetida situação já não o afetava tanto quanto outrora.

“Você escreveu todas essas coisas para as quais dizer adeus. Mas há tantas coisas boas. Por que não dizer adeus às coisas ruins? Diga adeus a todas as vezes que se sentiu perdido. Aos momentos que houve um não ao invés de um sim. Aos arranhados e machucados, à toda mágoa. Diga adeus a tudo o que você quer fazer pela última vez”

E foi então que disse adeus a todas as vezes que assistia o seu desejo acontecer com outras pessoas.

Disse adeus ao abandono.

Disse adeus para todos os momentos que se sentia sozinho e não tinha com quem compartilhar seus momentos de felicidade.

Disse adeus para aquele novembro que lhe tirou o chão.

Disse adeus à solidão que sentia quando esperou por horas que algum familiar chegasse ao hospital.

Disse adeus para todas as vezes que nenhuma pessoa ao seu redor demonstrava interesse em comemorar seu aniversário.

Disse adeus para quando apenas sua mãe esteve presente na sua colação de grau.

Disse adeus para as pessoas que o procuravam tempos depois de términos e separações para lhe dizer o quanto havia sido importante, mas não valorizado.

Disse adeus para todas as vezes que alguém não acreditou em sua capacidade ou que o desmereceu.

Disse adeus para toda forma de dor, desencorajamento, mágoas, todos os nãos, as mentiras a seu respeito e toda tentativa de fazê-lo menor do que era.

Disse adeus para todos os que se aproximavam sem nada a oferecer, e muito a subtrair.

Disse adeus para todas as vezes que se relacionou por necessidade e carência.

Disse adeus para tudo e para todos que o achavam menor, fraco.


Pois não era.