As correntes se rastejavam por entre as sombras do quarto
escuro. No centro uma luz perene permanecia sobre a cabeça do menino que se
sentava em uma cadeira de metal – e ele ouvia sem medo os elos de aço se
contorcendo e se esticando enquanto se aproximavam dele. Permanecia imóvel
olhando para seus pés que não tocavam o chão.
***
As lembranças lhe chicoteavam as
costas, arrancando pedaços de carne, enquanto permanecia atado ao tronco sem
que pudesse se colocar contra a dor que era causada. Lágrimas escorriam pelo
seu rosto e tocavam o chão fazendo com que instantaneamente brotassem flores
aos seus pés - as margaridas desabrochavam em muitas pétalas. Seus olhos
marejados não lhe permitiam ver o que estava acontecendo e seu grito a cada
chicotada abafava a bela música que a natureza oferecia como um presente. Dos pulsos
um filete de sangue escorria por tanto esforço para se livrar daquelas amarras
e ele queria levantar-se contra, pegar a arma e açoitar aquilo que lhe marcava
profundamente. Talvez por estar de costas ou talvez por ter os olhos tão
lacrimejantes, ele não percebia, não via, que tentar algo contra quem o fazia
sofrer daquela forma seria machucar a si mesmo, pois quem lhe fazia sangrar,
era ele mesmo.
***
Enrolaram-se pela perna da
cadeira e alcançaram as pernas do menino, atando-se como cobras que enterram
suas presas e imobilizam o alvo, mas não pararam por ali e continuaram subindo
pela criança que permanecia passiva frente ao ataque deliberado. Quando seu
corpo estava completamente preso, em uma perfeição macabra em que a qualquer
momento ele seria esmagado pelo apertar dos elos, sorriu e olhou para as
sombras de onde as correntes vinham.
- Oi. – Disse o menino.
***
Roçou as cordas no tronco, não
pretendia ficar indefeso daquela forma e assim, concentrando-se na liberdade,
não mais gritou nem chorou – tinha um foco agora e iria sair daquilo não
importando o que fosse necessário fazer. Percebeu as flores aos seus pés e viu
em cada pétala uma história diferente, não sobre outras pessoas e não sobre
nada que é de fora do coração. Ouviu daquelas margaridas, através de suas corolas,
um segredo.
***
- Já não disse para você parar
com isso? – Questionou o garoto.
- Não pararei.
- Não adianta, eu venço você ao
final. Suas tentativas são pífias e irritantes. – Riu de si mesmo usando uma
frase que achava divertida.
Com ar de diversão o garoto
levantou-se da cadeira fazendo com que as correntes se tornassem pó e quando,
passo a passo saiu da circunferência de luz, um brilho intenso em seu peito
iluminou toda a sala e atrás de si, projetada no chão, havia apenas sua sombra.
***
Puxou os pulsos, um para cada
lado, entendendo que as grossas cordas eram na verdade linhas finas feitas de um
material intangível. Virou-se e encarou o jardim de margaridas que iam até onde
a vista não mais alcançava e agradeceu por elas estarem sempre ali, todos os
dias ao sair e ao voltar, para lhe lembrarem de coisas que são invisíveis aos
olhos.
***
Sabia que ele agiria de novo,
pois eram um só. Ele que tem tantos nomes e vive por tempo suficiente quanto a
humanidade existe, sempre tem as mais complexas artimanhas para confundir e
atrair para amarras feitas de correntes de pó e cordas de sombras.
Mas por mais terrível que o Diabo
seja, nem ele pode contra algumas flores.
Segurou com força o Livro
dos Espelhos, conseguia utilizá-lo para ver à frente, ainda que suas
páginas apenas refletissem o que havia dentro de si. Páginas e mais páginas em
branco, exalando o cheiro de livro novo – mas de que adiantava se todas as
histórias que ali estavam ou que seriam escritas remetiam ao passado? A cada
página virada uma possibilidade de se visitar algo antigo, ainda que pudesse
jurar que suas memórias não eram lá de tanta confiança. Livro dos Sonhos, seria um nome mais apropriado. Talvez Livro dos Pesadelos. Mas isso
significaria que até então só vivera de sonhos ruins? Claro que não! “Se não fossem minhas malas cheias de
memórias. Ou aquela história que já faz mais de um ano. Se não fossem os danos,
não seria eu”. Visitar contos antigos às vezes é mais do que necessário, há
uma certa urgência como uma planta que seca em um vaso pequeno, em um desespero
silencioso por água. Percebeu então que a farpa que lhe atravessa a sola do pé
e o faz mancar a cada vez que toca o chão significava não apenas uma farpa que
dói. Significava que era preciso saber por onde se anda.
“A gente precisa saber
onde ancorar” Ela disse em um de seus contos. Algo sobre seu pai e a
relação tempestuosa que originou algumas de suas dores mais profundas. Parece
que ao final do conto, ela encontrou o perdão que não procurava.
A ferramenta mais útil que dispunha para tentar encontrar o
lugar onde jogar sua âncora era um candeeiro entregue por um homem muito velho e
tão sábio quanto era antigo. A pequena e cintilante chama ilumina os caminhos
que o coração deseja encontrar. Balançando de um lado para o outro enquanto
caminha, ela mostra as bifurcações que existem por todos os lados – e as
estradas possuem as mais variadas cores e o segredo é encontrar o caminho que
tem a mesma cor que seu coração. Às vezes era difícil distinguir as cores que
estavam diante dos olhos, uma vez que a chama não era forte o suficiente para
evitar que as penumbras sugerissem a ilusão na dança das cores. O azul às vezes
parecia verde, o roxo às vezes era preto e assim se seguia. “Só se vê bem com o coração”, lhe
confidenciou certa vez o candeeiro.
Mas, antes dessas cores, antes dos caminhos, antes de
qualquer significância a se atribuir ao destino (“O destino é uma vadia”, ouviu certa vez de uma alma amiga, em
contraste mas sem controvérsia com a frase “O
que o destino coloca à mesa eu como”, que outra alma amiga lhe
confidenciou. Ria em concordar e formulava a sua própria frase “O destino é uma vadia que põe a mesa e nos
faz comer”) ele sabia que de alguma forma há uma ligação entre todos os
fatos, como um fino fio de prata que liga as pessoas e as situações – o que
traduzia uma certeza especulativa de que se há um fio de prata, então somos
todos ouro e nos manchamos ou reluzimos à medida que aceitamos aquilo que essa meretriz
(que não se vende) chamada destino nos oferece. Ou nos obriga a comer.
E este fio, tão meticulosamente fiado, enrolado e cortado,
não poderia deixar de ter suas próprias fiandeiras, seu próprio tear. Seres
lúgubres que se sentavam ao redor de uma grande roda e a giravam sem um
controle predeterminado, ainda que soubessem que não deixariam em momento algum
a roda sair de seu próprio eixo.
Talhado na roda, está escrito: Regnabo a leste, Regno ao
norte, Regnavi a oeste, Sum Sine Regno ao sul. Sabia que seu momento era o sul,
era aquele que estava sem reino - mergulhado nas sombras da noite a observar a
lua em uma de suas belas evoluções pelo céu. “Uma superlua”, refletiu.
As marcações na Roda representam a jornada do Sol, portanto uma lua de tal
magnitude em um momento tão mergulhado em sombras só poderia significar a obviedade
das situações indesejadas. Se haveria de ser dessa forma, então que fosse.
Afinal, o destino é uma vadia que põe a mesa e nos obriga a comer.
Mas o candeeiro balançou,
e no seu vai e vem ele pode ler as letras douradas do leste.
Regnabo.
A Roda continua a
girar, é por isso que tantos a chamam dessa forma. Pois mesmo que ela possa
trazer sorte ou azar, temos uma única certeza: nada é para sempre.
Havia uma urgência em seu âmago. Uma chama que crepitava
lentamente lhe consumindo as veias, artérias e o próprio sangue – uma queda
lenta em direção a uma fogueira alta, que sem ao menos se aproximar, sentia o
calor lhe esbofeteando o rosto (ou seria o coração?). Era falível, embora
sempre estivesse altivo, ereto e duro como uma estátua de mármore, seria
possível que as chamas que não podiam ser vistas e nem tocadas, conseguissem
por fim determinar a deterioração de suas bases? Iria a estátua finalmente cair
na direção da fogueira e por fim, dar-lhe um fim?
Respirou profundamente, uma
vã tentativa de suprimir a ardência que sentia, que aumentava à medida que
inspirava, com o ar alimentando o fogo. Seria ele inspiração para algo ou
alguém? Duvidava. As águas que corriam pelos pés e brincavam com seus dedos não
eram da chuva, não naquela noite, não naquele momento – nem era água também.
Arrumou sua postura, tentou fingir que não havia um peso incomensurável sobre
seus ombros, quando foi que permitiu tantas porcarias naquele espaço sagrado,
que de sagrado não tinha nada – não por que não era, mas sim por que não
recebia esse valor. Sentiu a fumaça lhe estufando os pulmões, aquela velha e
barata tentativa de se manter a calma quando sente-se que o mundo ao redor estava
ruindo. Que mundo? Se perguntava com um amargor nos lábios, provocado não pelo
líquido incolor e inodoro que ingeria para amenizar a incandescência dentro de
si (indiscutivelmente sem resultado).
Decidiu caminhar ainda que os ossos das
pernas refutassem a vontade de se andar sem rumo - a quem queria enganar?
Alguns passos pelos corredores, pois sair daquele lugar implicaria em abrir mão
da responsabilidade que possuía, mais um peso entre tantas outras porcarias.
Voltou para o lugar que estava, onde as ervas daninhas sobem pela cadeira e
amarram seus braços e pernas, sem contudo, qualquer tentativa de se livrar
delas. Sabia que vez ou outra abria-se uma flor perto de seu rosto, a qual ele
olhava com um certo respeito, tentando ver beleza na planta antes que ela
espirrasse algum tipo de tóxico em seus olhos ou em suas narinas.
Desistiu, o
que se pode fazer contra aquilo que não há força para enfrentar? Se não há
resolução, resolvido está. E foi então que sentiu a ardência passar, a água sob
seus pés secar, e a planta afrouxar. Até as várias flores nocivas perderam sua
força, morrendo instantaneamente, na velocidade de um suspiro. Relaxar a mente
e o espírito, ouviu-se dizendo enquanto procurava pela sombra da confiança que
tentava exalar para si mesmo.
Pandora abriu a caixa e dentre tantas as
tristezas que espalhara pelo mundo, a pior talvez, fosse a esperança.
Subiu a montanha sentindo os flocos de neve caindo levemente
no seu rosto. Era primavera, mas tão perto do pico da montanha, sempre havia
neve. Quase um lembrete não escrito a respeito da necessidade de se retirar e
refletir. Estava para se encontrar com um velho conhecido que de tempos em
tempos surge para lhe dar a mão, balançar sua lanterna de um lado para o outro
e em alguns momentos, lhe emprestar o cajado.
Para a árdua tarefa que era subir a montanha caminhando
pelas trilhas íngremes, jogou sobre si um manto que não permitia o frio lhe
cortar a pele; pegou um galho de árvore para que servisse de apoio enquanto
subia; botas de pelo de carneiro para ter certeza que os pés não ficassem
dormentes. Preparação é sempre a palavra chave quando se tratava em se
encontrar com o velho.
À medida que subia lamentou-se por ter de fazer isso justo
agora, quando preferia os jardins floridos e o sol quente do vale. “Deve ter algum motivo muito especial para
esse encontro”, pensou. Um passo em falso e quase caiu no desfiladeiro, mas
por sorte carregava um livro grande e pesado às costas, que lhe fez contrapeso
e assim desabou sentado na trilha. Usou o galho como apoio e se levantou. Ainda
caminharia mais um pouco e passos em falso fazem parte da situação quando se
pretende chegar em algum lugar.
Fez a última curva aliviado e encontrou a caverna do velho,
onde viu a luz de uma fogueira lambendo as paredes rochosas. Entrou e ali viu
seu velho amigo sentado segurando uma vara com algum tipo de fruto na ponta,
sob o fogo.
- Como tem passado? – Lhe perguntou o homem sem levantar os
olhos, mas sorrindo daquele jeito banguela que irradia uma felicidade
contagiante, e fez com que o rapaz não se lamentasse mais por estar no alto de
uma montanha gelada, enquanto as flores desabrocham no vale.
- Bem, apesar de alguns obstáculos. – Lhe respondeu enquanto
tirava o manto úmido das costas.
- Temperança, Sacerdotisa hein?
- Ah... bem, sim. E ainda ganhei um livro!
- Ganhou. Mas sempre foi seu. Mas é esse o sentimento quando
não sabemos que temos algo e de repente, plim, aparece.
Aproximou as mãos do fogo para se aquecer, enquanto o velho
tirava a vara com o fruto do fogo.
- Recebeu meu chamado a contragosto não é?
- Caminhamos tanto tempo lado a lado que ás vezes sinto
saudade, mas você sabe, o caminho do Eremita é entender que tudo é aprendizado.
- Você parece ter entendido muito bem.
- Venho me esforçando para isso.
O velho sorriu banguela. Era verdade que o rapaz sempre se
esforçava para entender as situações pelas quais ele próprio passava, mesmo que
inicialmente tudo fosse confuso, sabia muito bem que era questão de tempo e de
se distanciar da questão para conseguir vislumbrar o todo e assim galgar pouco
a pouco o crescimento.
- Não há muito o que eu possa fazer por você agora.
- O que quer dizer?
- Estamos nos despedindo.
- Você não pode me deixar... quero dizer... preciso me
encontrar com você de tempos em tempos, conversar e tentar entender as coisas.
O velho se levantou e foi para o fundo da caverna, onde acendeu
o que parecia ser um candeeiro e quando virou-se, o rapaz viu um homem alto, de
barba longa e branca, com um manto que parecia ser um céu estrelado que se
expandia por todo o fundo da caverna, na sua mão direita um cajado de carvalho
entalhado com imagens de azevinho.
Um vento gelado soprou pela entrada da caverna, fazendo a
fogueira quase se apagar e assim que ela se restabeleceu o rapaz viu o homem
banguela na sua frente novamente.
- Para você. – Lhe estendeu o candeeiro feito de prata. – A partir
de agora você pode encontrar seu próprio caminho sem que exista minha influência.
Quando precisar, feche os olhos e mantenha a mente calma, focada nas estrelas e
na luz que há em você. Estaremos juntos de qualquer forma, mas é tempo de saber
que você é também seu próprio Eremita.
Agradeceu sem saber o que falar.
- Agora parta.
O rapaz se levantou e foi para a saída da caverna, com a
certeza de que aquele momento não era um adeus, mas um até logo.
“Como parte do ritual
(que aqui significa cerimônia), lembro-lhe caro leitor, que esta não é uma
história feliz. Novamente nosso protagonista parte em busca de algo e novamente
encontra uma situação adversa à que desejava. Talvez entre todos os dissabores
com os quais ele venha se acostumando, esse seja um dos menores deles.”
- Se fosse um dos menores ele não se lembraria até hoje. –
Disse o andrógino.
- O tempo que demoramos para esquecer é o que define se algo
é grande ou não?
- De forma alguma. Mas a questão primordial nessa discussão
é: você acha que é algo pequeno ou você tem certeza?
Deu às costas para o homem e observou o título no alto da
página
Uma história sem
grande importância.
Refletiu sobre as palavras ditas pelo homem sentado na
grande cadeira de prata. Riscou o título e o reescreveu embaixo:
Uma história sem
grande importância.
“A importância que
damos para as coisas.
Era uma noite quente de
primavera e como havia trabalhado muito durante a semana, decidiu que seria por
bem que iria para uma festa ao sábado. ‘Por bem’ nesse caso, quer dizer que
possivelmente lhe faria algum bem e deixaria a cabeça mais leve ir para alguma
festa e beber um pouco. Em ambos os casos, sair para uma festa e beber um pouco,
se tratavam apenas de uma conjectura falsa, já que mais tarde iria descobrir
que nenhuma das duas coisas iriam de fato lhe fazer bem.
Encontrou com seu
amigo para comprarem uma garrafa de vinho e se sentarem em uma avenida próxima,
que aos sábados tinha grande movimentação de menores de idade bêbados, alguns
assaltantes, carros em velocidades altas e algumas barraquinhas de comida
duvidosa. Mas o local onde gostavam de ficar conversando era próximo a um rio e
ele gostava de ver as luzes da cidade refletidas naquelas águas escuras e
então, como qualquer jovem incauto, achava que nada poderia acontecer de ruim.
Ele estava certo sobre não acontecer ali.
Beberam, conversaram e
se divertiram. A noite havia se tornado fresca e ele estava se sentindo tão bem
que pensou que nada de ruim poderia acontecer, quem sabe até conheceria alguém
naquela noite. Ele não sabia contudo, que essa era a parte ruim.
Caminharam pela
avenida sob árvores que floresciam à medida que os dias da primavera se
estabeleciam, a lua cheia brilhava alta no céu. Entraram em uma rua sem saída e
procuraram algum lugar para se sentarem à espera do momento em que as portas da
festa se abririam, ficaram observando os carros chegando e outras pessoas que
estavam sem veículos motorizados. Viu um garoto chegando, não mais velho que
ele, com cabelos lisos na altura dos ombros e bem magro – parecia chamar atenção
das outras pessoas que viravam a cabeça para olhá-lo. Nosso protagonista parou
para tentar se lembrar se já o tinha visto em algum lugar e concluiu que não.
- Como é bonito. –
comentou seu amigo com um olhar estranho, como se pudesse atacar o rapaz.
- Ah... bem... parece
um pouco bonito mas não sei... tem algo...
Mais um de nossos
momentos sublimes nos quais a intuição se sobrepõe ao racional mas como todo
péssimo protagonista, ele decide não ouvir a voz em sua cabeça. Talvez também
houvesse uma ação do destino (que aqui significa acreditar que as coisas
acontecem e são por uma vontade superior à nossa).
De qualquer maneira,
sua frase foi interrompida pela abertura das portas e a aglutinação das pessoas
que desejavam entrar ali. Pegou a fila também e continuou a conversa animada
com seu amigo que possuía tiques escandalosos e por muitas vezes lhe fazia
sentir vergonha.
Entraram no ambiente
escuro, mas já muito bem conhecido. Viu alguns rostos conhecidos e caminhou
entre as pessoas para chegar no caixa e pegar algumas fichas de cerveja. Passou
pela pista de dança para que chegar ao bar e no caminho cumprimentou mais algumas
pessoas.
Encostou-se no balcão distraído, quando veio uma voz do lado esquerdo.
- Oi, está sozinho?
Olhou para o lado e se
espantou com o rapaz de cabelos lisos até o ombro, encostado no bar e
atrapalhando que outras pessoas pegassem sua bebida.
- Er... oi... estou
com um amigo.
- Ah, um amigo, me
desculpe.
- Como assim?
- Achei que estava
sozinho.
- Não estou com
alguém, sabe, no sentido de estar com alguém.
Ficou olhando com uma
cara confusa para nosso protagonista.
- Não estou ficando ou
namorando ninguém. – Completou julgando que era essa informação que o outro
queria.
- Legal...
E começaram a
conversar enquanto bebiam cerveja e atrapalhavam outras pessoas de buscarem
suas bebidas. Em algum momento com as luzes piscando e o lugar se tornando
abafado à medida que mais pessoas chegavam, beijaram-se.
***
Saíram mais algumas
vezes e por volta da terceira semana, conversando todos os dias e se
descobrindo, decidiram que poderiam iniciar um namoro que nesse caso não tinha
um significado especial para o nosso protagonista, que entendia essa relação
como sendo algo tranquilo que poderia balancear entre o trabalho, a faculdade e
o momento que teria para estar com ele e com os amigos.
Os dias se
desenrolaram com o rapaz exigindo cada vez mais presença e com histórias cada
vez mais estranhas, como quando ele estava andando sozinho pela rua à noite e
foi abordado por um homem que desejava conhece-lo melhor. Justificou a
abordagem do homem (não que precisasse pois não foi questionado de nada) como
sendo culpa de uma magia feita para ele, em que as pessoas sempre sentiam
atração sexual.
- Magia para sentir
atração sexual por você? Interessante, como foi feito?
- Não posso contar.
- Tá, mas você não me
traiu não né?
- Claro que não.
Embora acreditasse no
rapaz, sabia que naquele dia ele havia chegado cerca de uma hora mais tarde em
sua casa.
***
Saiu no horário
costumeiro para ir encontrar com o namorado. Aos sábados trabalhava até próximo
do meio-dia, então pegava dois ônibus e ficava sem almoço para estar com ele o
maior tempo possível. Aquela era a terceira semana que mesmo estando um pouco
zonzo pela fome, recebeu a reclamação de que havia demorado muito. O rapaz de cabelos
lisos até o ombro chegou a ameaçar de não se ficarem juntos naquele dia, no
momento em que nosso protagonista desceu no ponto de encontro.
As brigas se tornaram
cada vez mais comuns e os motivos cada vez mais estúpidos. Ele estava se
cansando por se sentir cobrado demais e não atender às expectativas.
Mas quando estavam
juntos se sentia preenchido e feliz. Sabia que o outro gostava dele e o quanto
gostava.
Mas, essa história não
tem um final feliz e você ainda pode ir para outra postagem, como talvez o Mago
que fala sobre inteligência e esperteza, ou o Imperador que fala sobre uma
mulher e uma fotografia.
Mas o caso é que
tiveram uma conversa muito séria em uma sexta-feira quente de verão. O nosso
herói ficou com o coração na mão quando lhe disse que o término era a única
opção. O rapaz de cabelos lisos até o ombro lhe disse que não acreditava nisso
e que o nosso protagonista precisava melhor, precisava se tornar outra pessoa.
Nosso herói negou.
Saiu daquele local com
o rapaz ao seu encalço, aguardou o ônibus enquanto o outro chorava e pedia para
que ele não fosse.
***
- Não consigo continuar. Me sinto como se tivesse causado
tanta dor para ele.
- Continue.
- Não posso, eu fui tão... péssimo com ele.
- Existem coisas que você precisa entender. – Disse-lhe a Sacerdotisa
com um olhar meigo.
***
Terminaram, e então o
revés atingiu nosso protagonista em cheio, que ficou se sentindo mal pelo resto
da semana e não conseguia se imaginar com nenhuma outra pessoa. Não sabia
exatamente o que sentia por ele mas parecia que a forma certa de se gostar de
alguém era a forma como o rapaz de cabelos lisos até os ombros havia feito.
Preocupado com nosso
herói, o seu amigo o chamou para ir novamente para a boate onde tudo havia
começado. Poderiam beber e se divertir.
Repetiram os mesmos passos
relatados no começo do conto e foram para lá.
Como em toda
Desventura na qual aquilo que tem para dar errado provavelmente dará, o rapaz
de cabelos lisos até o ombro também estava ali e quando se encontraram lágrimas
rolaram e nosso protagonista se sentiu a pior pessoa do mundo, não acreditava
que estava fazendo isso com o rapaz.
Não acreditava.
Assim como não
acreditou quando, depois de uma semana, o rapaz de cabelos lisos até o ombro
estava passeando pelo centro da cidade de mãos dadas com outro rapaz (este não
possuía nem os cabelos lisos, nem até o ombro). Se cumprimentaram e foram
apresentados. O rapaz que não possuía os cabelos lisos e nem até o ombro foi
até a banca de jornal pois estava com pressa e o rapaz de cabelos lisos até o
ombro disse para o nosso herói:
- Finalmente achei
alguém que amo de verdade.
***
Pousou a caneta ao lado do livro.
- Interessante não é mesmo?
- Não sei o que dizer.
- Era real?
- Por que não seria?
- Por que seria?
- Por que as coisas possuem o peso que damos para elas.
Ficou olhando para o livro de páginas em branco. Estava
cansado e decidiu por fechá-lo e quando olhou para a capa, percebeu que o nome
estava diferente.
Desventuras em
Série
Livro do Espelho
- O nome... – Olhou para o andrógino.
- Está um pouco diferente.
- Espero que tenha sido proveitosa sua estada.
- Sentirei sua falta.
- Basta escrever e estarei com você.
Levantou-se e deu um abraço forte no homem. Virou-se e
caminhou em direção à saída do templo.
The young man stepped into the hall of mirrors Where he discovered a reflection of himself
Even the greatest stars Discover themselves in the lookingglass Even the greatest stars Discover themselves in the lookingglass
Sometimes he saw his real face And sometimes a stranger at his place
Even the greatest stars Find their face in the looking glass Even the greatest stars Find their face in the looking glass
He fell in love with the image of himself And suddenly the picture was distorted
“Leonard era um grande
mentiroso, que falava o que precisava para conseguir aquilo que desejava. Até
mesmo se aproximou de uma pessoa e espalhou boatos sobre ela para colocar seu
namorado em um sentimento ruim e se afastar de sua amiga. Uma péssima pessoa”
- É assim que você começa e termina um primeiro capítulo?
- Não tenho muito o que falar sobre ele.
Ele cerrou os olhos em sinal de desaprovação e permaneceu
parado como uma estátua à espera de uma mudança na fala do homem que deveria
iniciar o Capítulo Um Mau Começo.
- Ok... – Deu às costas e voltou-se para o livro em branco.
Um Mau Começo
“Se você procura por
uma história com final feliz, essa postagem com toda certeza não é para você.
Mas se você procura um conto sobre mentiras escandalosas, torta de limão e um
livro roubado, possivelmente essa é a história que você procura. Mas se ainda
deseja manter alguma esperança em seu coração, pode pular para alguma outra
postagem que fala sobre coisas mais felizes, como um Sol que aquece ou um Carro
que avança com força.
Nosso herói inicia a
jornada diante das boas intenções de uma conhecida sua, com quem por várias e
várias vezes dançou e bebeu junto em uma boate.
- Tenho uma pessoa
para te apresentar.
- Ele é bonito?
- Não, mas acho que é
uma boa pessoa e vocês combinam.
É nesse momento que
entendemos o significado da palavra intenção que nesse caso se remete a uma tentativa de realizar algo pelo outro,
em específico nessa situação, algo bom. O mundo está repleto de intenções e de
vontades, algumas boas e outras tantas ruins. O que define exatamente se é algo
bom ou ruim depende basicamente da pessoa que teve a ideia. No caso, nosso
herói acredita até hoje que a menina teve a melhor de todas as intenções,
apesar do quão obtusas se tornaram as situações a partir do momento em que
decidiu colocar uma roupa bonita, passar perfume e ir ao encontro do rapaz no
shopping. Nesse ponto, é melhor que você pare com a leitura, a partir de agora
as coisas irão ocorrer de forma tão desesperançosa que nem vale a pena.
O encontro foi
interessante, apesar do homem alto e de aparência estranha ficar sempre se
movendo, não conseguia permanecer com o corpo parado em nenhum momento. “Deve
ser um pouco agitado”, pensou o garoto
com toda a magnificência da inocência.
Após pedirem seus
cafés, conversarem sobre como era a vida deles, decidiram ver algum filme no
cinema e ao se levantar o rapaz alto disse:
- Esqueci minha carteira...
- Ah, tudo bem eu pago
– E sorriu.
Senhoras e senhores.
Quando esse tipo de constrangimento acontece, você não sabe exatamente onde
enfiar a cara – essa expressão, acredito eu, vem de uma família de aves
distante da família humana. Distante no sentido biológico, já que não há
notícias sobre uma família de avestruzes que jantaram com uma família humana,
portanto no sentido emocional e mental não podemos ter certeza da exata
distancia que há entre nós e eles. A questão é que essa família de aves gosta
de enfiar a cabeça em algum buraco pelo chão quando acontece algo ruim por
perto (fonte de consulta: desenhos animados). O homem não trouxe a carteira e
não aparentava estar constrangido com o fato, embora ele não fosse um avestruz,
não parecia propenso em abrir um buraco no chão para se enterrar e nem enterrar
a própria cabeça.
- Vamos para o cinema
então. – E saiu caminhando na frente, seguido pelo nosso jovem herói.
Assistiram o filme, se
divertiram e até ficaram de mãos dadas. Nosso protagonista parecia feliz com a
situação e aquele era seu primeiro encontro, quem sabe ele se transformaria no
primeiro namorado? Nossas escolhas, às vezes, são cruéis conosco mesmo.
***
- O recheio ficou bom,
como você fez?
- Leite condensado,
limão e um ingrediente secreto. – Disse sem olhar para ela.
- Sei.
Quando o homem foi
usar o banheiro, a melhor amiga de nosso protagonista abaixou o tom de voz e o
chamou em um canto:
- Koi, ele é estranho.
- Como assim?
- Não sei, tem algo
esquisito nele.
- Não gostou da torta
de limão?
- Não gostei dele.
- Besteira.
Se empanturraram com o
doce, e embora a garota estivesse sendo simpática, para o seu melhor amigo era
visível o desconforto dela.
- Vamos embora. – Leonard
propôs sem parecer uma proposta e sim uma imposição.
Se despediram e quando
já estavam na rua, o falacioso homem lhe disse que gostaria que conhecesse uma
pessoa especial para ele. O garoto aceitou feliz a possibilidade de se
encontrar com mais uma pessoa enganada por ele um pessoa especial para ele.
Foram pelas ruas
conversando sobre amenidades e sobre o trabalho do homem alto e eis que aqui
aparece mais uma possibilidade para fugir da armadilha que era essa relação.
Nosso protagonista entretanto, apesar de sua inocência ser um grande dom, não
usou de sua própria intuição e inteligência.
- Sua amiga não gosta
tanto assim de você.
- Por que?
- Ela disse que você
incomoda demais quando aparece lá.
- Ela não disse isso.
- Sim disse, falou que
você vai muitas vezes e às vezes ela só quer sossego.
- Hum...
- Ficou chateado?
- Não.
- Por que?
- Ela jamais diria
isso.
- Não acredita em mim?
Acha que sou mentiroso?
- Não é isso. – E fez
silêncio.
Era um apartamento que
ficava na curva de uma rua larga, olhando debaixo para cima parecia uma dessas
casas retiradas de algum livro de contos estranhos, sem nada de feliz. Mas
ainda que obviamente devesse correr na direção oposta ao homem que estava ao
seu lado, como se estivesse em uma maratona ou se sua vida dependesse disso,
ficou ali e se sentiu importante por
conhecer uma pessoa especial para ele.
Era sua tia. Não se
lembrava exatamente o nome dela, apenas que era uma senhora dada a se divertir
em bingos, com várias amigas na mesma faixa de idade, solteiras e viúvas.
Poderia facilmente se passar pela vovó da chapeuzinho vermelho, talvez bem mais
moderna, mas ainda assim teria sido engolida pelo lobo – e foi.
O encontro foi
excepcionalmente gostoso, com direito a café e bolo de fubá. Conversaram
bastante e se sentiu acolhido quando a senhorinha contou a respeito de um amigo
gay que tivera, que havia morado no mesmo prédio que ela e que saíram várias
vezes - uma ótima companhia. Mas como
essa história não é nada feliz (e você leitor já foi avisado sobre isso), uma
situação trágica acometeu o seu querido amigo. Havia morrido uns anos antes,
vítima de um acidente de carro voltando de uma festa com seu namorado. O nosso
herói se apiedou da senhora enquanto segurava a foto de um garoto que deveria
ter a idade dele e decidiu que viria visita-la mais vezes para que não se
sentisse tão sozinha.
Depois dessa conversa
que tiveram sem Leonard, que saiu repentinamente para resolver algum assunto
isento da verdade, foram para a cozinha comer mais bolo. Então ela começou a
lhe contar da relação difícil que seu sobrinho tinha com os pais, envolvia
brigas terríveis, expulsão de casa e falta de apoio dos irmãos dele. Ela
acreditava que era pelo fato dele ser gay, mas não tinha tantas certezas sobre
isso.
Leonard chegou
esbaforido e com a boca vermelha, que dizia ele tinha coçado bastante alguns momentos
antes de chegar no apartamento. Foram embora logo depois.
***
Nesse ponto da
história é quando uma vozinha dentro da cabeça do nosso protagonista começa a
dizer coisas a ele. Coisas boas, não confundir com algum tipo de esquizofrenia.
Ele teve um momento para se salvar da rede de mentiras em que estava caindo mas
como todo bom vilão, Leonard tinha uma carta na manga para segurá-lo.
Ao perceber que o
garoto estava achando as histórias e situações cada vez mais estranhas e
confusas, Leonard lhe confidenciou um imenso segredo, algo que envolvia risco
de morte – que nesse caso o significado biológico é perfeitamente aplicável,
como sendo interrupção definitiva da vida de um organismo – o vilão lhe disse
que estava com leucemia.
Abraçaram-se e o
garoto teve medo por perder o seu, então, namorado. Passou várias noites sem
dormir direito e até acordou o outro durante a madrugada enquanto chorava
triste. Até mesmo sua melhor amiga que já sentia o fedor de enxofre nas
mentiras contadas ficou preocupada e permitiu que Leonard levasse um de seus
queridos livros para ler entre um vômito e outro, enquanto estivesse em
tratamento.
Bem, esse livro nunca
mais retornou a ela e nosso protagonista teve de procurar e comprar outro livro
que substituísse aquele. Ao contrário de Leonard, nosso jovem herói tem um
forte senso sobre o que é certo e errado. Lhe faltava malandragem, que é aquela
pessoa que vive através de recursos engenhosos para conquistar algo na vida.
Diante de tanto
desespero, nosso herói decidiu fazer mais uma visita à casa da tia do nosso
nada bem quisto vilão.
Quando entrou pela a
senhora lhe deu um abraço apertado e o chamou até a cozinha para comer um
pedaço de bolo de maçã e tomar um café.
- Filho, preciso te
dizer uma coisa.
- Sim? – Ficou preocupado
com a notícia que estava por vir.
- É tudo mentira.
- Tudo o que?
- O que o Leonard
disse.
- Sobre...?
- Tudo. A irmã dele
veio aqui e disse que não há nenhum problema na casa dele. Eles até dão
dinheiro quando ele precisa muito.
- Isso é bom por que a
doença dele...
- Doença?
- Sim, a leucemia...
- Ele disse isso?
- Sim, disse que vai
viajar esse fim de semana para começar o tratamento.
- Sobre isso.. bem...
você não é o único namorado dele...
- Como... assim...?
- Ele tem outro
namorado, a família conhece e... eles... vão para o litoral no sábado.
Nosso destemido e
inocente herói bebericou o café por que as palavras se engasgaram na sua
garganta – o que significa nesse caso que era como se existisse uma bola do
tamanho das que são utilizadas no jogo de tênis, entalada na sua garganta,
embora fisicamente isso só poderia significar a morte, emocionalmente ou
psicologicamente isso representava uma vontade indescritível de colocar para
fora todos os sentimentos ruins, provavelmente através de choro.
Saiu do apartamento
dela com o coração apertado, e quanto mais caminhava sentia que a senhorinha
ficava cada vez menor até se tornar um borrão. Parecia que os caminhos que
estavam por vir se revelariam tenebrosos – que aqui quer dizer “cheio de
desgosto e sem sentido.”
Ao menos, não se viram
mais. Exceto quando nosso vilão o chamou em uma rede social e obteve como
resposta “Não me procure mais seu ladrão”. Obviamente nosso herói iria se tornar cada vez mais uma pessoa
diferente, mas essa história fica para outro momento.”,
“Querida Sacerdotisa,
Espero que essas
linhas estejam a seu contento e percebo agora que Leonard, o vilão que aparece
nessa história desafortunada era na verdade, ele próprio um total desprovido de
sorte e moral. Nada que nosso herói pudesse fazer iria mudar a situação pela
qual passou e julgá-lo pela sua inocência diante do péssimo caráter de alguém
10 anos mais velho seria injusto.
Escrevo enquanto minha
memória passa se recobrar de uma festa estranha em uma rua sem saída, uma
conversa sobre magia de atração e tontura por falta de almoço.
Via a si mesmo refletido no chão meticulosamente limpo,
andava sem ter certeza se deveria entrar naquele templo, naquele momento. As
prateleiras se erguiam imponentes ao seu redor e a vista não conseguia ver a
altura máxima que elas atingiam, o teto escuro lhe lembrava o céu noturno,
enquanto que as fileiras intermináveis de livros desapareciam nas sombras ao
alto. O piso quadriculado, branco e preto, o fez querer pisar apenas em uma das
cores, como quando era criança e se divertia proibindo-se de pisar em algum
determinado elemento que se repetia enquanto andava (pisar apenas no branco
quando atravessava a rua em uma faixa de pedestres, por exemplo).
Aproximou-se
de um portal, em cada lado uma pilastra que se erguia para além da vista,
também na dualidade das cores vistas nos pisos. Inscrito ao chão, na entrada do
portal, uma bela imagem da lua, mostrando as suas fases e disposta na forma de
um arco. Respirou fundo e deu outro passo, entrando no templo.
O local possuía
tantas prateleiras quanto havia no ambiente interior, mas ali eram dispostas em
forma circular e no centro, sentado sob uma cadeira alta feita de prata, um
homem (ou talvez fosse mulher, não teve certeza) com vestes vitorianas, em tons
de azul (do mais claro ao mais escuro). Sua androginia fascinava, a pele clara
quase perolada fazia perfeita combinação com os olhos claros rosados e os
cabelos prateados. Uma postura impecável transparecia a timidez de quem prefere
se voltar para si do que para o outro.
Quando o viu se aproximando, disse em
voz alta e limpa:
- A 17ª carta. Esse é o lugar reservado a mim? – Seu olhar
sereno revelava mais uma curiosidade do que estar ofendido pela posição
dedicada a ele.
- Bem... é o momento que sinto que deveria encontrar com você.
- Pois bem... - Levantou-se da cadeira e foi até uma das estantes, apanhou um
livro com uma capa desgastada e colocou sobre uma mesa de mogno que não estava
ali antes. - Seja bem-vindo.
Indicou com as duas mãos uma cadeira do mesmo
material que a mesa, que também se materializou em instantes. O homem sentou-se
e olhou para a capa em estado lastimável.
Desventuras em Série
- Eu gosto desse
livro... mas a série é grande e não queria me demorar muito aqui.
- São muitos
livros não é mesmo?
- Muitos.
- Esse autor não deveria escrever tanto não acha?
- Ele escreve bem, gosto como conta as histórias alertando que são tristes mas
não sentimos o peso que ele diz ter. - Ele deixa as coisas leves.
-Sim.
- Então... posso ler apenas o primeiro livro e tentar descobrir o que preciso e
partir?
- Claro que sim.
Sorriu pela resposta e abriu o livro que se encontrava
em branco. Folheou em busca de alguma coisa escrita e não encontrou nada,
voltou para a capa e olhou melhor. Estava seu nome no lugar do nome do autor.
-
Mas o que...
- Era assim que se chamava não é? Desventuras em Série. Era um
blog interessante, um pouco desnecessário, mas uma coisa não exime a outra.
-
Não entendo...
- Seja bem-vindo ao templo da Sacerdotisa. Aqui se guarda tudo
aquilo que necessitamos para seguirmos em frente. No amor, na experiência e em
toda nossa vida. A ponte do passado de onde viemos, na qual só se passa pela
sua guarita aqueles que são capazes de criá-la em seus corações.
Olhou para o
livro em branco.
- Está em branco pois me parece que você não quis carregar
algumas coisas que lhe pesavam demais. Do que abriu mão?
- Muitas coisas.
- O
que ganhou em troca?
- Uma forte intuição.
- É esse o nome que você dá para a
tentativa de observar um padrão que, embora não se repita, você acredita
fielmente que acontece em ciclos e que não há nada que possa ser feito?
-
Prefiro ir embora. - Levantou-se e deu alguns passos em direção à porta.
- Você
reclama da Temperança mas nem ao menos deixa que ela faça o trabalho dela lá
fora. Vamos lá, você não tem mais nada a fazer mesmo. Sente-se, pegue um café e
escreva.
Virou-se para o ser andrógino, meio preocupado em revirar as memórias
em busca de algo que nem ao menos sabia o que era. Sentou-se novamente e pegou
o café que, assim como as outras coisas, se materializou.
- Por onde começo?
-
Pelo começo.
Suspirou. Escreveu no alto da primeira página em branco:
Tocou novamente Eduardo
e Mônica. Revirou os olhos e tirou os fones de ouvido, mudou de posição na
cama. Queria dormir nem que fosse para ter um pesadelo, muito embora não
tivesse percebido que ao colocar aquela música no celular estava praticamente
chamando por algum tormento, uma memória mal resolvida que vem à tona, às vezes
como algo bom que aquece o coração, às vezes o efeito é inverso.
Puxou as cobertas e colocou o travesseiro sob os olhos. Não
demorou e adormeceu.
***
Sinto sua falta.
Dizia a mensagem.
Podemos nos ver?
Veio logo em seguida.
Mentalmente respondeu que “não”. Escreveu qualquer coisa sobre
estar disponível em algum dia da semana.
Então semana que vem nos vemos.
Talvez.
Respondeu mentalmente de novo, mas dessa vez não deu a
devolutiva.
Pensou sobre todas as situações
enfrentadas e naqueles quase 2 anos de um vai e vem sem trégua. Sentiu-se
cansado por ter passado por isso e com uma preguiça sem tamanho para permitir
um novo encontro. Talvez.
O cotidiano lhe tomou a atenção e
não se lembrou das trocas de mensagens com o velho conhecido. Ficou feliz com
algumas soluções encontradas no trabalho e radiante com algumas possibilidades
que se descortinaram e se esqueceu de comentar com a amiga sobre a procura de
supetão e a conversa como aconteceu. Talvez.
Saiu com alguns colegas para se
divertir e saciar a fome de terem tantas coisas em comum mas a relação estar
fadada ao ambiente de trabalho. Riram e se alimentaram de pizza e de uns dos
outros – como uma saudade não dita, mas latente, sem memorandos, ofícios,
comunicados e reuniões. Foram embora com o sentimento de que deveriam provocar
mais momentos como esse e quem sabe alugar algum lugar para passarem um fim de
semana juntos, fazendo churrasco e bebendo. Talvez.
Recebeu um convite para dar uma
escapada do trabalho. Ir para uma outra cidade acompanhar o amigo que iria
fazer uma consulta médica e caso sobrasse tempo, dar umas voltas no shopping.
Conversaram sobre vários assuntos no caminho, bebericavam um no outro como uma
abelha que se aproxima de uma flor. A amizade iria desabrochar em breve e se
tornariam bons companheiros. Talvez.
***
Estou na cidade.
Chegou bem?
Sim, cansativo, mas bem.
Que bom.
Nos vemos na sexta-feira?
Uma mulher havia descoberto a
traição de seu marido. Um casal apaixonado se rendia à paixão avassaladora que
geraria uma criança depois de 9 meses. Uma menina mostrou o dente de leite que
tinha acabado de cair. Um adolescente começou um canal na internet e depois de
3 anos iria se tornar muito famoso. Um homem tropeçou na rua e caiu em uma poça
d’água. Uma moça conseguiu uma entrevista de emprego depois de 2 anos sem
trabalhar. Uma criança caiu do berço quando tentava escalar e estava aos berros
esperando pelo socorro dos pais. Uma mulher escolhia o vestido que usaria na
sua formatura em medicina.
Ele demorou 20 minutos para
responder aquela mensagem e não tinha ideia da quantidade de coisas que haviam
acontecido pelo mundo enquanto estava ali, parado com o celular na mão
refletindo sobre o que falar (ou escrever) e ainda assim, só conseguiu
ser sincero na sua própria cabeça.
Mas respondeu que “sim”.
***
Talvez.
- Vamos para um bar? – Perguntou seu
amigo
- Vamos, deixa eu ver se a
Beatriz vai. – pegou o celular e ao procurar pelo contato dela, recebeu uma
mensagem:
Oi?
Passou rapidamente pelos contatos
e ligou para ela que aceitou, desde que esperassem se arrumar. Foram até a casa
dela enquanto olhavam para a lua que minguava, conversavam amenidades e
cantavam Eduardo e Mônica que tocava
na rádio.
- Nessa parte, “a Mônica de moto
e o Eduardo de camelo”, você sabe o que significa camelo?
- Olha, nunca ouvi essa
expressão, mas pelo contexto é bicicleta?
- A maioria das pessoas que
pergunto isso não sabem o que responder, acham que ele só queria uma palavra
que pudesse rimar.
- Renato Russo jamais faria isso.
- Nem todo mundo conhece.
- Não, nem todo mundo conhece.
Saíram os três e voltaram pela
madrugada. Foi divertido. Um pouco divertido. Talvez.
- Não sei dizer... céu azul e sol o dia todo. Anoitece,
neblina.
- Há um equilíbrio
então.
- Não sei... na noite já temos uma visão reduzida e enxergamos
pouco o que está à frente. Podemos tropeçar. Com neblina então, as coisas
tendem a piorar.
- Você precisa avançar
no escuro e na neblina?
- Não. Mas e o sol durante o dia, não há nenhuma nuvem e ele
brilha tão forte e quente. Chega a ser gostoso sentir tocando na pele.
- Então avance sob o
sol.
- Por que não pode ser um avanço completo?
- Você consegue essa
completude dentro de você?
- Eu... não...
- Aproveite o momento
então, e aprenda.
***
Bebericou levemente o café quente
enquanto observava o novo dia chegando. Sol novamente e céu azul, mas sabia que
naquela noite iria vir a neblina. Acendeu um cigarro, às vezes quando faltam
palavras a fumaça preenche o vazio que existe ali. Cigarros são poemas mal
cheirosos.
Foi até o pessegueiro e viu duas
flores próximas, com algumas folhas ao seu redor impedindo uma vista clara.
Arrancou as folhas e pegou o celular para tirar uma foto - com o céu azul ao
fundo, folhagem verde e as duas pequenas flores cor-de-rosa, ficou parecendo um
quadro do florescer da primavera, e já era primavera. Se perguntou se elas se
tornariam pêssegos.
Sentiu uma leve brisa que tocou o
seu rosto, fechou os olhos e viu diante de si uma bela mulher com asas de anjo,
em sua mão direita, um cálice dourado e na esquerda, um prateado. Os antigos
reservavam um nome especial para ela, que representava a união dos céus com a
terra, em uma aliança forjada na bondade e no afeto. Viu a mulher despejar a
água de um cálice para o outro, com um rosto sempre sereno. Por algum tempo
pensava na Temperança como uma carta desmotivadora – esperar, era o que sempre ouvia.
Íris estava ali não para avisar
sobre a espera. Não iria pedir para que ele ficasse em silêncio aguardando a
ação do tempo (que muitas vezes simplesmente não age) ou a ação de terceiros.
Havia passado pelo Enforcado com grande dificuldade, um empurrão feito pelo Carro
para que encontrasse o caminho certo e diante de si, com as asas tão belas, a
deusa estava a lhe mostrar o que significava a Temperança e por que foi
conduzido até ali (sem saber se por ele mesmo ou por obra do destino).
Sentiu-se Iluminado e calmo.
A água passava de um cálice para
o outro enquanto ela olhava serenamente para ele.