segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A Temperança (ou Carta XIV)




- Neblina... todos os dias ao anoitecer.

- E o que você acha disso?

- Não sei dizer... céu azul e sol o dia todo. Anoitece, neblina.

- Há um equilíbrio então.

- Não sei... na noite já temos uma visão reduzida e enxergamos pouco o que está à frente. Podemos tropeçar. Com neblina então, as coisas tendem a piorar.

- Você precisa avançar no escuro e na neblina?

- Não. Mas e o sol durante o dia, não há nenhuma nuvem e ele brilha tão forte e quente. Chega a ser gostoso sentir tocando na pele.

- Então avance sob o sol.

- Por que não pode ser um avanço completo?

- Você consegue essa completude dentro de você?

- Eu... não...

- Aproveite o momento então, e aprenda.

***

Bebericou levemente o café quente enquanto observava o novo dia chegando. Sol novamente e céu azul, mas sabia que naquela noite iria vir a neblina. Acendeu um cigarro, às vezes quando faltam palavras a fumaça preenche o vazio que existe ali. Cigarros são poemas mal cheirosos.

Foi até o pessegueiro e viu duas flores próximas, com algumas folhas ao seu redor impedindo uma vista clara. Arrancou as folhas e pegou o celular para tirar uma foto - com o céu azul ao fundo, folhagem verde e as duas pequenas flores cor-de-rosa, ficou parecendo um quadro do florescer da primavera, e já era primavera. Se perguntou se elas se tornariam pêssegos.

Sentiu uma leve brisa que tocou o seu rosto, fechou os olhos e viu diante de si uma bela mulher com asas de anjo, em sua mão direita, um cálice dourado e na esquerda, um prateado. Os antigos reservavam um nome especial para ela, que representava a união dos céus com a terra, em uma aliança forjada na bondade e no afeto. Viu a mulher despejar a água de um cálice para o outro, com um rosto sempre sereno. Por algum tempo pensava na Temperança como uma carta desmotivadora – esperar, era o que sempre ouvia.

Íris estava ali não para avisar sobre a espera. Não iria pedir para que ele ficasse em silêncio aguardando a ação do tempo (que muitas vezes simplesmente não age) ou a ação de terceiros. Havia passado pelo Enforcado com grande dificuldade, um empurrão feito pelo Carro para que encontrasse o caminho certo e diante de si, com as asas tão belas, a deusa estava a lhe mostrar o que significava a Temperança e por que foi conduzido até ali (sem saber se por ele mesmo ou por obra do destino).

Sentiu-se Iluminado e calmo.


A água passava de um cálice para o outro enquanto ela olhava serenamente para ele.



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