quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A Roda da Fortuna (Ou Carta X)

Fortes fortuna adiuvat.




Segurou com força o Livro dos Espelhos, conseguia utilizá-lo para ver à frente, ainda que suas páginas apenas refletissem o que havia dentro de si. Páginas e mais páginas em branco, exalando o cheiro de livro novo – mas de que adiantava se todas as histórias que ali estavam ou que seriam escritas remetiam ao passado? A cada página virada uma possibilidade de se visitar algo antigo, ainda que pudesse jurar que suas memórias não eram lá de tanta confiança. Livro dos Sonhos, seria um nome mais apropriado. Talvez Livro dos Pesadelos. Mas isso significaria que até então só vivera de sonhos ruins? Claro que não! “Se não fossem minhas malas cheias de memórias. Ou aquela história que já faz mais de um ano. Se não fossem os danos, não seria eu”. Visitar contos antigos às vezes é mais do que necessário, há uma certa urgência como uma planta que seca em um vaso pequeno, em um desespero silencioso por água. Percebeu então que a farpa que lhe atravessa a sola do pé e o faz mancar a cada vez que toca o chão significava não apenas uma farpa que dói. Significava que era preciso saber por onde se anda.

“A gente precisa saber onde ancorar” Ela disse em um de seus contos. Algo sobre seu pai e a relação tempestuosa que originou algumas de suas dores mais profundas. Parece que ao final do conto, ela encontrou o perdão que não procurava.

A ferramenta mais útil que dispunha para tentar encontrar o lugar onde jogar sua âncora era um candeeiro entregue por um homem muito velho e tão sábio quanto era antigo. A pequena e cintilante chama ilumina os caminhos que o coração deseja encontrar. Balançando de um lado para o outro enquanto caminha, ela mostra as bifurcações que existem por todos os lados – e as estradas possuem as mais variadas cores e o segredo é encontrar o caminho que tem a mesma cor que seu coração. Às vezes era difícil distinguir as cores que estavam diante dos olhos, uma vez que a chama não era forte o suficiente para evitar que as penumbras sugerissem a ilusão na dança das cores. O azul às vezes parecia verde, o roxo às vezes era preto e assim se seguia. “Só se vê bem com o coração”, lhe confidenciou certa vez o candeeiro.

Mas, antes dessas cores, antes dos caminhos, antes de qualquer significância a se atribuir ao destino (“O destino é uma vadia”, ouviu certa vez de uma alma amiga, em contraste mas sem controvérsia com a frase “O que o destino coloca à mesa eu como”, que outra alma amiga lhe confidenciou. Ria em concordar e formulava a sua própria frase “O destino é uma vadia que põe a mesa e nos faz comer”) ele sabia que de alguma forma há uma ligação entre todos os fatos, como um fino fio de prata que liga as pessoas e as situações – o que traduzia uma certeza especulativa de que se há um fio de prata, então somos todos ouro e nos manchamos ou reluzimos à medida que aceitamos aquilo que essa meretriz (que não se vende) chamada destino nos oferece. Ou nos obriga a comer.

E este fio, tão meticulosamente fiado, enrolado e cortado, não poderia deixar de ter suas próprias fiandeiras, seu próprio tear. Seres lúgubres que se sentavam ao redor de uma grande roda e a giravam sem um controle predeterminado, ainda que soubessem que não deixariam em momento algum a roda sair de seu próprio eixo.

Talhado na roda, está escrito: Regnabo a leste, Regno ao norte, Regnavi a oeste, Sum Sine Regno ao sul. Sabia que seu momento era o sul, era aquele que estava sem reino - mergulhado nas sombras da noite a observar a lua em uma de suas belas evoluções pelo céu. “Uma superlua”, refletiu. As marcações na Roda representam a jornada do Sol, portanto uma lua de tal magnitude em um momento tão mergulhado em sombras só poderia significar a obviedade das situações indesejadas. Se haveria de ser dessa forma, então que fosse. Afinal, o destino é uma vadia que põe a mesa e nos obriga a comer.

Mas o candeeiro balançou, e no seu vai e vem ele pode ler as letras douradas do leste.

Regnabo.

A Roda continua a girar, é por isso que tantos a chamam dessa forma. Pois mesmo que ela possa trazer sorte ou azar, temos uma única certeza: nada é para sempre.

Por isso, como iria descobrir, ela se chama:

Fortuna.


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