sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A Sacerdotisa (Ou Carta II) - Parte 1




Via a si mesmo refletido no chão meticulosamente limpo, andava sem ter certeza se deveria entrar naquele templo, naquele momento. As prateleiras se erguiam imponentes ao seu redor e a vista não conseguia ver a altura máxima que elas atingiam, o teto escuro lhe lembrava o céu noturno, enquanto que as fileiras intermináveis de livros desapareciam nas sombras ao alto. O piso quadriculado, branco e preto, o fez querer pisar apenas em uma das cores, como quando era criança e se divertia proibindo-se de pisar em algum determinado elemento que se repetia enquanto andava (pisar apenas no branco quando atravessava a rua em uma faixa de pedestres, por exemplo). 

Aproximou-se de um portal, em cada lado uma pilastra que se erguia para além da vista, também na dualidade das cores vistas nos pisos. Inscrito ao chão, na entrada do portal, uma bela imagem da lua, mostrando as suas fases e disposta na forma de um arco. Respirou fundo e deu outro passo, entrando no templo. 

O local possuía tantas prateleiras quanto havia no ambiente interior, mas ali eram dispostas em forma circular e no centro, sentado sob uma cadeira alta feita de prata, um homem (ou talvez fosse mulher, não teve certeza) com vestes vitorianas, em tons de azul (do mais claro ao mais escuro). Sua androginia fascinava, a pele clara quase perolada fazia perfeita combinação com os olhos claros rosados e os cabelos prateados. Uma postura impecável transparecia a timidez de quem prefere se voltar para si do que para o outro. 

Quando o viu se aproximando, disse em voz alta e limpa: 

- A 17ª carta. Esse é o lugar reservado a mim? – Seu olhar sereno revelava mais uma curiosidade do que estar ofendido pela posição dedicada a ele. 

- Bem... é o momento que sinto que deveria encontrar com você. 

- Pois bem... - Levantou-se da cadeira e foi até uma das estantes, apanhou um livro com uma capa desgastada e colocou sobre uma mesa de mogno que não estava ali antes. - Seja bem-vindo. 

Indicou com as duas mãos uma cadeira do mesmo material que a mesa, que também se materializou em instantes. O homem sentou-se e olhou para a capa em estado lastimável. 

Desventuras em Série 

- Eu gosto desse livro... mas a série é grande e não queria me demorar muito aqui. 

- São muitos livros não é mesmo? 

- Muitos.

- Esse autor não deveria escrever tanto não acha? 

- Ele escreve bem, gosto como conta as histórias alertando que são tristes mas não sentimos o peso que ele diz ter. - Ele deixa as coisas leves. 

-Sim. 

- Então... posso ler apenas o primeiro livro e tentar descobrir o que preciso e partir? 

- Claro que sim. 

Sorriu pela resposta e abriu o livro que se encontrava em branco. Folheou em busca de alguma coisa escrita e não encontrou nada, voltou para a capa e olhou melhor. Estava seu nome no lugar do nome do autor. 

- Mas o que... 

- Era assim que se chamava não é? Desventuras em Série. Era um blog interessante, um pouco desnecessário, mas uma coisa não exime a outra. 

- Não entendo... 

- Seja bem-vindo ao templo da Sacerdotisa. Aqui se guarda tudo aquilo que necessitamos para seguirmos em frente. No amor, na experiência e em toda nossa vida. A ponte do passado de onde viemos, na qual só se passa pela sua guarita aqueles que são capazes de criá-la em seus corações.

Olhou para o livro em branco. 

- Está em branco pois me parece que você não quis carregar algumas coisas que lhe pesavam demais. Do que abriu mão? 

- Muitas coisas. 

- O que ganhou em troca?

- Uma forte intuição. 

- É esse o nome que você dá para a tentativa de observar um padrão que, embora não se repita, você acredita fielmente que acontece em ciclos e que não há nada que possa ser feito? 

- Prefiro ir embora. - Levantou-se e deu alguns passos em direção à porta.

- Você reclama da Temperança mas nem ao menos deixa que ela faça o trabalho dela lá fora. Vamos lá, você não tem mais nada a fazer mesmo. Sente-se, pegue um café e escreva. 

Virou-se para o ser andrógino, meio preocupado em revirar as memórias em busca de algo que nem ao menos sabia o que era. Sentou-se novamente e pegou o café que, assim como as outras coisas, se materializou. 

- Por onde começo? 

- Pelo começo. 

Suspirou. Escreveu no alto da primeira página em branco: 

Um mau começo.




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