“Como parte do ritual
(que aqui significa cerimônia), lembro-lhe caro leitor, que esta não é uma
história feliz. Novamente nosso protagonista parte em busca de algo e novamente
encontra uma situação adversa à que desejava. Talvez entre todos os dissabores
com os quais ele venha se acostumando, esse seja um dos menores deles.”
- Se fosse um dos menores ele não se lembraria até hoje. –
Disse o andrógino.
- O tempo que demoramos para esquecer é o que define se algo
é grande ou não?
- De forma alguma. Mas a questão primordial nessa discussão
é: você acha que é algo pequeno ou você tem certeza?
Deu às costas para o homem e observou o título no alto da
página
Uma história sem
grande importância.
Refletiu sobre as palavras ditas pelo homem sentado na
grande cadeira de prata. Riscou o título e o reescreveu embaixo:
“A importância que
damos para as coisas.
Era uma noite quente de
primavera e como havia trabalhado muito durante a semana, decidiu que seria por
bem que iria para uma festa ao sábado. ‘Por bem’ nesse caso, quer dizer que
possivelmente lhe faria algum bem e deixaria a cabeça mais leve ir para alguma
festa e beber um pouco. Em ambos os casos, sair para uma festa e beber um pouco,
se tratavam apenas de uma conjectura falsa, já que mais tarde iria descobrir
que nenhuma das duas coisas iriam de fato lhe fazer bem.
Encontrou com seu
amigo para comprarem uma garrafa de vinho e se sentarem em uma avenida próxima,
que aos sábados tinha grande movimentação de menores de idade bêbados, alguns
assaltantes, carros em velocidades altas e algumas barraquinhas de comida
duvidosa. Mas o local onde gostavam de ficar conversando era próximo a um rio e
ele gostava de ver as luzes da cidade refletidas naquelas águas escuras e
então, como qualquer jovem incauto, achava que nada poderia acontecer de ruim.
Ele estava certo sobre não acontecer ali.
Beberam, conversaram e
se divertiram. A noite havia se tornado fresca e ele estava se sentindo tão bem
que pensou que nada de ruim poderia acontecer, quem sabe até conheceria alguém
naquela noite. Ele não sabia contudo, que essa era a parte ruim.
Caminharam pela
avenida sob árvores que floresciam à medida que os dias da primavera se
estabeleciam, a lua cheia brilhava alta no céu. Entraram em uma rua sem saída e
procuraram algum lugar para se sentarem à espera do momento em que as portas da
festa se abririam, ficaram observando os carros chegando e outras pessoas que
estavam sem veículos motorizados. Viu um garoto chegando, não mais velho que
ele, com cabelos lisos na altura dos ombros e bem magro – parecia chamar atenção
das outras pessoas que viravam a cabeça para olhá-lo. Nosso protagonista parou
para tentar se lembrar se já o tinha visto em algum lugar e concluiu que não.
- Como é bonito. –
comentou seu amigo com um olhar estranho, como se pudesse atacar o rapaz.
- Ah... bem... parece
um pouco bonito mas não sei... tem algo...
Mais um de nossos
momentos sublimes nos quais a intuição se sobrepõe ao racional mas como todo
péssimo protagonista, ele decide não ouvir a voz em sua cabeça. Talvez também
houvesse uma ação do destino (que aqui significa acreditar que as coisas
acontecem e são por uma vontade superior à nossa).
De qualquer maneira,
sua frase foi interrompida pela abertura das portas e a aglutinação das pessoas
que desejavam entrar ali. Pegou a fila também e continuou a conversa animada
com seu amigo que possuía tiques escandalosos e por muitas vezes lhe fazia
sentir vergonha.
Entraram no ambiente
escuro, mas já muito bem conhecido. Viu alguns rostos conhecidos e caminhou
entre as pessoas para chegar no caixa e pegar algumas fichas de cerveja. Passou
pela pista de dança para que chegar ao bar e no caminho cumprimentou mais algumas
pessoas.
Encostou-se no balcão distraído, quando veio uma voz do lado esquerdo.
- Oi, está sozinho?
Olhou para o lado e se
espantou com o rapaz de cabelos lisos até o ombro, encostado no bar e
atrapalhando que outras pessoas pegassem sua bebida.
- Er... oi... estou
com um amigo.
- Ah, um amigo, me
desculpe.
- Como assim?
- Achei que estava
sozinho.
- Não estou com
alguém, sabe, no sentido de estar com alguém.
Ficou olhando com uma
cara confusa para nosso protagonista.
- Não estou ficando ou
namorando ninguém. – Completou julgando que era essa informação que o outro
queria.
- Legal...
E começaram a
conversar enquanto bebiam cerveja e atrapalhavam outras pessoas de buscarem
suas bebidas. Em algum momento com as luzes piscando e o lugar se tornando
abafado à medida que mais pessoas chegavam, beijaram-se.
***
Saíram mais algumas
vezes e por volta da terceira semana, conversando todos os dias e se
descobrindo, decidiram que poderiam iniciar um namoro que nesse caso não tinha
um significado especial para o nosso protagonista, que entendia essa relação
como sendo algo tranquilo que poderia balancear entre o trabalho, a faculdade e
o momento que teria para estar com ele e com os amigos.
Os dias se
desenrolaram com o rapaz exigindo cada vez mais presença e com histórias cada
vez mais estranhas, como quando ele estava andando sozinho pela rua à noite e
foi abordado por um homem que desejava conhece-lo melhor. Justificou a
abordagem do homem (não que precisasse pois não foi questionado de nada) como
sendo culpa de uma magia feita para ele, em que as pessoas sempre sentiam
atração sexual.
- Magia para sentir
atração sexual por você? Interessante, como foi feito?
- Não posso contar.
- Tá, mas você não me
traiu não né?
- Claro que não.
Embora acreditasse no
rapaz, sabia que naquele dia ele havia chegado cerca de uma hora mais tarde em
sua casa.
***
Saiu no horário
costumeiro para ir encontrar com o namorado. Aos sábados trabalhava até próximo
do meio-dia, então pegava dois ônibus e ficava sem almoço para estar com ele o
maior tempo possível. Aquela era a terceira semana que mesmo estando um pouco
zonzo pela fome, recebeu a reclamação de que havia demorado muito. O rapaz de cabelos
lisos até o ombro chegou a ameaçar de não se ficarem juntos naquele dia, no
momento em que nosso protagonista desceu no ponto de encontro.
As brigas se tornaram
cada vez mais comuns e os motivos cada vez mais estúpidos. Ele estava se
cansando por se sentir cobrado demais e não atender às expectativas.
Mas quando estavam
juntos se sentia preenchido e feliz. Sabia que o outro gostava dele e o quanto
gostava.
Mas, essa história não
tem um final feliz e você ainda pode ir para outra postagem, como talvez o Mago
que fala sobre inteligência e esperteza, ou o Imperador que fala sobre uma
mulher e uma fotografia.
Mas o caso é que
tiveram uma conversa muito séria em uma sexta-feira quente de verão. O nosso
herói ficou com o coração na mão quando lhe disse que o término era a única
opção. O rapaz de cabelos lisos até o ombro lhe disse que não acreditava nisso
e que o nosso protagonista precisava melhor, precisava se tornar outra pessoa.
Nosso herói negou.
Saiu daquele local com
o rapaz ao seu encalço, aguardou o ônibus enquanto o outro chorava e pedia para
que ele não fosse.
***
- Não consigo continuar. Me sinto como se tivesse causado
tanta dor para ele.
- Continue.
- Não posso, eu fui tão... péssimo com ele.
- Existem coisas que você precisa entender. – Disse-lhe a Sacerdotisa
com um olhar meigo.
***
Terminaram, e então o
revés atingiu nosso protagonista em cheio, que ficou se sentindo mal pelo resto
da semana e não conseguia se imaginar com nenhuma outra pessoa. Não sabia
exatamente o que sentia por ele mas parecia que a forma certa de se gostar de
alguém era a forma como o rapaz de cabelos lisos até os ombros havia feito.
Preocupado com nosso
herói, o seu amigo o chamou para ir novamente para a boate onde tudo havia
começado. Poderiam beber e se divertir.
Repetiram os mesmos passos
relatados no começo do conto e foram para lá.
Como em toda
Desventura na qual aquilo que tem para dar errado provavelmente dará, o rapaz
de cabelos lisos até o ombro também estava ali e quando se encontraram lágrimas
rolaram e nosso protagonista se sentiu a pior pessoa do mundo, não acreditava
que estava fazendo isso com o rapaz.
Não acreditava.
Assim como não
acreditou quando, depois de uma semana, o rapaz de cabelos lisos até o ombro
estava passeando pelo centro da cidade de mãos dadas com outro rapaz (este não
possuía nem os cabelos lisos, nem até o ombro). Se cumprimentaram e foram
apresentados. O rapaz que não possuía os cabelos lisos e nem até o ombro foi
até a banca de jornal pois estava com pressa e o rapaz de cabelos lisos até o
ombro disse para o nosso herói:
- Finalmente achei
alguém que amo de verdade.
***
Pousou a caneta ao lado do livro.
- Interessante não é mesmo?
- Não sei o que dizer.
- Era real?
- Por que não seria?
- Por que seria?
- Por que as coisas possuem o peso que damos para elas.
Ficou olhando para o livro de páginas em branco. Estava
cansado e decidiu por fechá-lo e quando olhou para a capa, percebeu que o nome
estava diferente.
Livro do Espelho
- O nome... – Olhou para o andrógino.
- Está um pouco diferente.
- Espero que tenha sido proveitosa sua estada.
- Sentirei sua falta.
- Basta escrever e estarei com você.
Levantou-se e deu um abraço forte no homem. Virou-se e
caminhou em direção à saída do templo.
The young man stepped into the hall of mirrors
Where he discovered a reflection of himself
Where he discovered a reflection of himself
Even the greatest stars
Discover themselves in the lookingglass
Even the greatest stars
Discover themselves in the lookingglass
Discover themselves in the lookingglass
Even the greatest stars
Discover themselves in the lookingglass
Sometimes he saw his real face
And sometimes a stranger at his place
And sometimes a stranger at his place
Even the greatest stars
Find their face in the looking glass
Even the greatest stars
Find their face in the looking glass
Find their face in the looking glass
Even the greatest stars
Find their face in the looking glass
He fell in love with the image of himself
And suddenly the picture was distorted
And suddenly the picture was distorted
The Hall of Morrirs, Kraftwerk

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