quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Diabo ( Ou Carta XV)

Nosce te ipsum.




As correntes se rastejavam por entre as sombras do quarto escuro. No centro uma luz perene permanecia sobre a cabeça do menino que se sentava em uma cadeira de metal – e ele ouvia sem medo os elos de aço se contorcendo e se esticando enquanto se aproximavam dele. Permanecia imóvel olhando para seus pés que não tocavam o chão.

***

As lembranças lhe chicoteavam as costas, arrancando pedaços de carne, enquanto permanecia atado ao tronco sem que pudesse se colocar contra a dor que era causada. Lágrimas escorriam pelo seu rosto e tocavam o chão fazendo com que instantaneamente brotassem flores aos seus pés - as margaridas desabrochavam em muitas pétalas. Seus olhos marejados não lhe permitiam ver o que estava acontecendo e seu grito a cada chicotada abafava a bela música que a natureza oferecia como um presente. Dos pulsos um filete de sangue escorria por tanto esforço para se livrar daquelas amarras e ele queria levantar-se contra, pegar a arma e açoitar aquilo que lhe marcava profundamente. Talvez por estar de costas ou talvez por ter os olhos tão lacrimejantes, ele não percebia, não via, que tentar algo contra quem o fazia sofrer daquela forma seria machucar a si mesmo, pois quem lhe fazia sangrar, era ele mesmo.

***

Enrolaram-se pela perna da cadeira e alcançaram as pernas do menino, atando-se como cobras que enterram suas presas e imobilizam o alvo, mas não pararam por ali e continuaram subindo pela criança que permanecia passiva frente ao ataque deliberado. Quando seu corpo estava completamente preso, em uma perfeição macabra em que a qualquer momento ele seria esmagado pelo apertar dos elos, sorriu e olhou para as sombras de onde as correntes vinham.

- Oi. – Disse o menino.

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Roçou as cordas no tronco, não pretendia ficar indefeso daquela forma e assim, concentrando-se na liberdade, não mais gritou nem chorou – tinha um foco agora e iria sair daquilo não importando o que fosse necessário fazer. Percebeu as flores aos seus pés e viu em cada pétala uma história diferente, não sobre outras pessoas e não sobre nada que é de fora do coração. Ouviu daquelas margaridas, através de suas corolas, um segredo.

***

- Já não disse para você parar com isso? – Questionou o garoto.

- Não pararei.

- Não adianta, eu venço você ao final. Suas tentativas são pífias e irritantes. – Riu de si mesmo usando uma frase que achava divertida.

Com ar de diversão o garoto levantou-se da cadeira fazendo com que as correntes se tornassem pó e quando, passo a passo saiu da circunferência de luz, um brilho intenso em seu peito iluminou toda a sala e atrás de si, projetada no chão, havia apenas sua sombra.

***

Puxou os pulsos, um para cada lado, entendendo que as grossas cordas eram na verdade linhas finas feitas de um material intangível. Virou-se e encarou o jardim de margaridas que iam até onde a vista não mais alcançava e agradeceu por elas estarem sempre ali, todos os dias ao sair e ao voltar, para lhe lembrarem de coisas que são invisíveis aos olhos.

***

Sabia que ele agiria de novo, pois eram um só. Ele que tem tantos nomes e vive por tempo suficiente quanto a humanidade existe, sempre tem as mais complexas artimanhas para confundir e atrair para amarras feitas de correntes de pó e cordas de sombras.

Mas por mais terrível que o Diabo seja, nem ele pode contra algumas flores.




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