Nosce te ipsum.
As correntes se rastejavam por entre as sombras do quarto
escuro. No centro uma luz perene permanecia sobre a cabeça do menino que se
sentava em uma cadeira de metal – e ele ouvia sem medo os elos de aço se
contorcendo e se esticando enquanto se aproximavam dele. Permanecia imóvel
olhando para seus pés que não tocavam o chão.
***
As lembranças lhe chicoteavam as
costas, arrancando pedaços de carne, enquanto permanecia atado ao tronco sem
que pudesse se colocar contra a dor que era causada. Lágrimas escorriam pelo
seu rosto e tocavam o chão fazendo com que instantaneamente brotassem flores
aos seus pés - as margaridas desabrochavam em muitas pétalas. Seus olhos
marejados não lhe permitiam ver o que estava acontecendo e seu grito a cada
chicotada abafava a bela música que a natureza oferecia como um presente. Dos pulsos
um filete de sangue escorria por tanto esforço para se livrar daquelas amarras
e ele queria levantar-se contra, pegar a arma e açoitar aquilo que lhe marcava
profundamente. Talvez por estar de costas ou talvez por ter os olhos tão
lacrimejantes, ele não percebia, não via, que tentar algo contra quem o fazia
sofrer daquela forma seria machucar a si mesmo, pois quem lhe fazia sangrar,
era ele mesmo.
***
Enrolaram-se pela perna da
cadeira e alcançaram as pernas do menino, atando-se como cobras que enterram
suas presas e imobilizam o alvo, mas não pararam por ali e continuaram subindo
pela criança que permanecia passiva frente ao ataque deliberado. Quando seu
corpo estava completamente preso, em uma perfeição macabra em que a qualquer
momento ele seria esmagado pelo apertar dos elos, sorriu e olhou para as
sombras de onde as correntes vinham.
- Oi. – Disse o menino.
***
Roçou as cordas no tronco, não
pretendia ficar indefeso daquela forma e assim, concentrando-se na liberdade,
não mais gritou nem chorou – tinha um foco agora e iria sair daquilo não
importando o que fosse necessário fazer. Percebeu as flores aos seus pés e viu
em cada pétala uma história diferente, não sobre outras pessoas e não sobre
nada que é de fora do coração. Ouviu daquelas margaridas, através de suas corolas,
um segredo.
***
- Já não disse para você parar
com isso? – Questionou o garoto.
- Não pararei.
- Não adianta, eu venço você ao
final. Suas tentativas são pífias e irritantes. – Riu de si mesmo usando uma
frase que achava divertida.
Com ar de diversão o garoto
levantou-se da cadeira fazendo com que as correntes se tornassem pó e quando,
passo a passo saiu da circunferência de luz, um brilho intenso em seu peito
iluminou toda a sala e atrás de si, projetada no chão, havia apenas sua sombra.
***
Puxou os pulsos, um para cada
lado, entendendo que as grossas cordas eram na verdade linhas finas feitas de um
material intangível. Virou-se e encarou o jardim de margaridas que iam até onde
a vista não mais alcançava e agradeceu por elas estarem sempre ali, todos os
dias ao sair e ao voltar, para lhe lembrarem de coisas que são invisíveis aos
olhos.
***
Sabia que ele agiria de novo,
pois eram um só. Ele que tem tantos nomes e vive por tempo suficiente quanto a
humanidade existe, sempre tem as mais complexas artimanhas para confundir e
atrair para amarras feitas de correntes de pó e cordas de sombras.
Mas por mais terrível que o Diabo
seja, nem ele pode contra algumas flores.

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