“Havia dor em seu
coração. A perda de alguém que amava mais do que a si própria a fez usar
caminhos escusos que não teria escolhido se tivesse com a consciência em paz.
Pegou a barra de metal, a faca e diante da fogueira fez um corte profundo em
sua mão – segurou o metal o mais firme que conseguiu e deixou que caísse
algumas gotas na fogueira, que escorriam pela barra antes que fossem consumidas
nas chamas. Entoou cânticos há muito esquecidos e ali vendeu parte de si mesma,
de sua alma. Vingança, um dos mais antigos sentimentos da humanidade, o qual
nem mesmo os deuses conseguem evitar, estava ali ao alcance de suas mãos e
mesmo que não estivesse, como conhecedora de grandes mistérios que era, a velha
bruxa lançaria mão do que fosse necessário para assim conseguir sua vitória. A
julgar pela mudança de cores no fogo bruxuleante, que variou entre matizes e
nuances, seu desejo seria atendido. A magia praticada pela velha previa o mal
ao próximo, perdão não era o sentimento que ela iria encontrar para os algozes,
mas não percebeu que antes de perdoá-los deveria perdoar a si mesma e assim
traçou sua queda no grande abismo que devora todas as almas – o sentimento
nefasto que cria sombras que nos puxam para próximo das trevas que criamos em
nossos corações e obriga nossa alma a se envolver com elas. Devemos sempre
temer por aquilo que desejamos, pois pode-se tornar realidade e a bruxa,
infelizmente, desejou olhar para o abismo.
Já a menina vestida em
roupas como se fosse uma pequena boneca, servia a todos os homens que assim
desejassem. Não por vontade própria, já que era jovem demais para desejar
relações sexuais com os mais variados tipos de pessoas, mas o dinheiro que a
pequena conseguia para seu dono (e não há uma palavra que defina melhor do que
essa, dono) não era facilmente conquistado pelas mulheres mais velhas. Seu
rosto sempre carregado de maquiagem branca, com leves toques avermelhados na
bochecha, e seus olhos com uma profunda sombra negra denunciavam a completa
destruição de sua inocência, mesmo que seus grandes olhos sempre amedrontados
lhe conferissem a sensação de ser uma presa para as feras que buscavam sexo
independente do quanto gastariam para isso. Sem saber exatamente quem era, usando
sempre o vestido curto e meias calças – ambos na cor branca da inocência,
adquiriu um gosto pelos atos sexuais que era obrigada a praticar, como se
aquela fosse a única forma de encontrar diversão e carinho em um mundo escuro e
distorcido que lhe arrancou a vivência de uma criança que deveria estar
brincando com bonecas e sendo preparada para o casamento. A francesinha de
séculos atrás foi servir a um homem em uma praia, e durante o ato nada pode
contra as mãos que lhe subiram de seus seios em formação na direção de sua
garganta, não tinha forças para sequer tentar evitar o que ali era inevitável.
Sufocou-se ainda sentindo o pênis do homem dentro dela. Foi atirada ao mar e não
se soube o que realmente havia acontecido.
Houve um casal também,
que por força do destino e das pessoas que viviam ao redor deles, foram
obrigados a fugir para viverem o seu grande e verdadeiro amor. Mas essa é uma
história que também não termina bem. Correndo por entre árvores em um caminho
de terra e pedra, a mulher tentava desesperadamente encontrar o homem – sentia no
fundo do seu coração que aquele desencontro na noite da fuga iria gerar grande
infortúnio, mas se fosse rápida o suficiente poderia encontrá-lo e então
partir. Os ardis de sua própria família a levaram ao atraso e ao desencontro
que, quanto mais corria, mais tinha certeza que seria fatal. Sentiu seu próprio
coração parar ao ouvir um estampido alto, que cortou a noite e fez com que
morcegos e corujas voassem para longe das árvores onde estavam. Sentiu em seu
próprio peito a dor do que estava acontecendo e quase desmaiou. Mas era forte,
forte demais para uma mulher de sua época (como seu pai lhe disse várias
vezes). Sujando de barro as barras de seu vestido negro, que fora
cuidadosamente escolhido pela sua mãe que lhe puxou os fios do espartilho com
pesar no rosto, mantendo eles seguros mas frouxos. Sua mãe, talvez no último
momento tenha se arrependido das próprias ações, mas mesmo o sussurro no ouvido
da filha (‘Corra’) não era suficiente para evitar a desgraça que se seguia. Encontrou
um grupo de homens que serviam à sua família e abrindo espaço entre eles
jogou-se sobre o corpo de seu amado. Em desespero gritou e chorou. Quando foi
encontrada pelo seu pai, seus cabelos cheios de cachos estavam sujos de sangue
que saiu pela boca do homem com quem desejava se casar. As palavras do homem
terminaram por retalhar seu coração. ‘Isso acontece quando não se ouve o
próprio pai’."
***
- Por que me contou apenas uma parte de cada história e não
todo o conjunto?
- O conjunto não acrescenta nada, essas partes são aquilo
que definem algumas situações atuais.
- Definem?
- Autoconhecimento é o que você busca não é?
- Sim.
Fez-se alguns momentos de silêncio enquanto o jovem olhava
para o nada, pensativo.
- Há alguma forma de mudar essas situações? As coisas que
aconteceram?
- Sim, existe.
- Irei fazê-lo.
- A partir daqui já não posso ajudá-lo.
- Gratidão mestre.
O homem de rosto inflexível se virou e então suas vestes que
eram simples, tornaram-se ornamentos de alguém de alta posição hierárquica, e a
julgar pelos símbolos, possivelmente pertencia a alguma ordem, alguma igreja.
Quando ganhou certa distância, virou-se para o jovem e fez
um sinal com mão como se abençoasse: dois dedos para cima, dois dedos para
baixo e o polegar firme ao centro da palma da mão.
E se despediu, por agora.









