segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O Hierofante (Ou carta V)


“Havia dor em seu coração. A perda de alguém que amava mais do que a si própria a fez usar caminhos escusos que não teria escolhido se tivesse com a consciência em paz. Pegou a barra de metal, a faca e diante da fogueira fez um corte profundo em sua mão – segurou o metal o mais firme que conseguiu e deixou que caísse algumas gotas na fogueira, que escorriam pela barra antes que fossem consumidas nas chamas. Entoou cânticos há muito esquecidos e ali vendeu parte de si mesma, de sua alma. Vingança, um dos mais antigos sentimentos da humanidade, o qual nem mesmo os deuses conseguem evitar, estava ali ao alcance de suas mãos e mesmo que não estivesse, como conhecedora de grandes mistérios que era, a velha bruxa lançaria mão do que fosse necessário para assim conseguir sua vitória. A julgar pela mudança de cores no fogo bruxuleante, que variou entre matizes e nuances, seu desejo seria atendido. A magia praticada pela velha previa o mal ao próximo, perdão não era o sentimento que ela iria encontrar para os algozes, mas não percebeu que antes de perdoá-los deveria perdoar a si mesma e assim traçou sua queda no grande abismo que devora todas as almas – o sentimento nefasto que cria sombras que nos puxam para próximo das trevas que criamos em nossos corações e obriga nossa alma a se envolver com elas. Devemos sempre temer por aquilo que desejamos, pois pode-se tornar realidade e a bruxa, infelizmente, desejou olhar para o abismo.

Já a menina vestida em roupas como se fosse uma pequena boneca, servia a todos os homens que assim desejassem. Não por vontade própria, já que era jovem demais para desejar relações sexuais com os mais variados tipos de pessoas, mas o dinheiro que a pequena conseguia para seu dono (e não há uma palavra que defina melhor do que essa, dono) não era facilmente conquistado pelas mulheres mais velhas. Seu rosto sempre carregado de maquiagem branca, com leves toques avermelhados na bochecha, e seus olhos com uma profunda sombra negra denunciavam a completa destruição de sua inocência, mesmo que seus grandes olhos sempre amedrontados lhe conferissem a sensação de ser uma presa para as feras que buscavam sexo independente do quanto gastariam para isso. Sem saber exatamente quem era, usando sempre o vestido curto e meias calças – ambos na cor branca da inocência, adquiriu um gosto pelos atos sexuais que era obrigada a praticar, como se aquela fosse a única forma de encontrar diversão e carinho em um mundo escuro e distorcido que lhe arrancou a vivência de uma criança que deveria estar brincando com bonecas e sendo preparada para o casamento. A francesinha de séculos atrás foi servir a um homem em uma praia, e durante o ato nada pode contra as mãos que lhe subiram de seus seios em formação na direção de sua garganta, não tinha forças para sequer tentar evitar o que ali era inevitável. Sufocou-se ainda sentindo o pênis do homem dentro dela. Foi atirada ao mar e não se soube o que realmente havia acontecido.

Houve um casal também, que por força do destino e das pessoas que viviam ao redor deles, foram obrigados a fugir para viverem o seu grande e verdadeiro amor. Mas essa é uma história que também não termina bem. Correndo por entre árvores em um caminho de terra e pedra, a mulher tentava desesperadamente encontrar o homem – sentia no fundo do seu coração que aquele desencontro na noite da fuga iria gerar grande infortúnio, mas se fosse rápida o suficiente poderia encontrá-lo e então partir. Os ardis de sua própria família a levaram ao atraso e ao desencontro que, quanto mais corria, mais tinha certeza que seria fatal. Sentiu seu próprio coração parar ao ouvir um estampido alto, que cortou a noite e fez com que morcegos e corujas voassem para longe das árvores onde estavam. Sentiu em seu próprio peito a dor do que estava acontecendo e quase desmaiou. Mas era forte, forte demais para uma mulher de sua época (como seu pai lhe disse várias vezes). Sujando de barro as barras de seu vestido negro, que fora cuidadosamente escolhido pela sua mãe que lhe puxou os fios do espartilho com pesar no rosto, mantendo eles seguros mas frouxos. Sua mãe, talvez no último momento tenha se arrependido das próprias ações, mas mesmo o sussurro no ouvido da filha (‘Corra’) não era suficiente para evitar a desgraça que se seguia. Encontrou um grupo de homens que serviam à sua família e abrindo espaço entre eles jogou-se sobre o corpo de seu amado. Em desespero gritou e chorou. Quando foi encontrada pelo seu pai, seus cabelos cheios de cachos estavam sujos de sangue que saiu pela boca do homem com quem desejava se casar. As palavras do homem terminaram por retalhar seu coração. ‘Isso acontece quando não se ouve o próprio pai’."

***

- Por que me contou apenas uma parte de cada história e não todo o conjunto?

- O conjunto não acrescenta nada, essas partes são aquilo que definem algumas situações atuais.

- Definem?

- Autoconhecimento é o que você busca não é?

- Sim.

Fez-se alguns momentos de silêncio enquanto o jovem olhava para o nada, pensativo.

- Há alguma forma de mudar essas situações? As coisas que aconteceram?

- Sim, existe.

- Irei fazê-lo.

- A partir daqui já não posso ajudá-lo.

- Gratidão mestre.

O homem de rosto inflexível se virou e então suas vestes que eram simples, tornaram-se ornamentos de alguém de alta posição hierárquica, e a julgar pelos símbolos, possivelmente pertencia a alguma ordem, alguma igreja.

Quando ganhou certa distância, virou-se para o jovem e fez um sinal com mão como se abençoasse: dois dedos para cima, dois dedos para baixo e o polegar firme ao centro da palma da mão.

E se despediu, por agora.



quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Diabo ( Ou Carta XV)

Nosce te ipsum.




As correntes se rastejavam por entre as sombras do quarto escuro. No centro uma luz perene permanecia sobre a cabeça do menino que se sentava em uma cadeira de metal – e ele ouvia sem medo os elos de aço se contorcendo e se esticando enquanto se aproximavam dele. Permanecia imóvel olhando para seus pés que não tocavam o chão.

***

As lembranças lhe chicoteavam as costas, arrancando pedaços de carne, enquanto permanecia atado ao tronco sem que pudesse se colocar contra a dor que era causada. Lágrimas escorriam pelo seu rosto e tocavam o chão fazendo com que instantaneamente brotassem flores aos seus pés - as margaridas desabrochavam em muitas pétalas. Seus olhos marejados não lhe permitiam ver o que estava acontecendo e seu grito a cada chicotada abafava a bela música que a natureza oferecia como um presente. Dos pulsos um filete de sangue escorria por tanto esforço para se livrar daquelas amarras e ele queria levantar-se contra, pegar a arma e açoitar aquilo que lhe marcava profundamente. Talvez por estar de costas ou talvez por ter os olhos tão lacrimejantes, ele não percebia, não via, que tentar algo contra quem o fazia sofrer daquela forma seria machucar a si mesmo, pois quem lhe fazia sangrar, era ele mesmo.

***

Enrolaram-se pela perna da cadeira e alcançaram as pernas do menino, atando-se como cobras que enterram suas presas e imobilizam o alvo, mas não pararam por ali e continuaram subindo pela criança que permanecia passiva frente ao ataque deliberado. Quando seu corpo estava completamente preso, em uma perfeição macabra em que a qualquer momento ele seria esmagado pelo apertar dos elos, sorriu e olhou para as sombras de onde as correntes vinham.

- Oi. – Disse o menino.

***

Roçou as cordas no tronco, não pretendia ficar indefeso daquela forma e assim, concentrando-se na liberdade, não mais gritou nem chorou – tinha um foco agora e iria sair daquilo não importando o que fosse necessário fazer. Percebeu as flores aos seus pés e viu em cada pétala uma história diferente, não sobre outras pessoas e não sobre nada que é de fora do coração. Ouviu daquelas margaridas, através de suas corolas, um segredo.

***

- Já não disse para você parar com isso? – Questionou o garoto.

- Não pararei.

- Não adianta, eu venço você ao final. Suas tentativas são pífias e irritantes. – Riu de si mesmo usando uma frase que achava divertida.

Com ar de diversão o garoto levantou-se da cadeira fazendo com que as correntes se tornassem pó e quando, passo a passo saiu da circunferência de luz, um brilho intenso em seu peito iluminou toda a sala e atrás de si, projetada no chão, havia apenas sua sombra.

***

Puxou os pulsos, um para cada lado, entendendo que as grossas cordas eram na verdade linhas finas feitas de um material intangível. Virou-se e encarou o jardim de margaridas que iam até onde a vista não mais alcançava e agradeceu por elas estarem sempre ali, todos os dias ao sair e ao voltar, para lhe lembrarem de coisas que são invisíveis aos olhos.

***

Sabia que ele agiria de novo, pois eram um só. Ele que tem tantos nomes e vive por tempo suficiente quanto a humanidade existe, sempre tem as mais complexas artimanhas para confundir e atrair para amarras feitas de correntes de pó e cordas de sombras.

Mas por mais terrível que o Diabo seja, nem ele pode contra algumas flores.




quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A Roda da Fortuna (Ou Carta X)

Fortes fortuna adiuvat.




Segurou com força o Livro dos Espelhos, conseguia utilizá-lo para ver à frente, ainda que suas páginas apenas refletissem o que havia dentro de si. Páginas e mais páginas em branco, exalando o cheiro de livro novo – mas de que adiantava se todas as histórias que ali estavam ou que seriam escritas remetiam ao passado? A cada página virada uma possibilidade de se visitar algo antigo, ainda que pudesse jurar que suas memórias não eram lá de tanta confiança. Livro dos Sonhos, seria um nome mais apropriado. Talvez Livro dos Pesadelos. Mas isso significaria que até então só vivera de sonhos ruins? Claro que não! “Se não fossem minhas malas cheias de memórias. Ou aquela história que já faz mais de um ano. Se não fossem os danos, não seria eu”. Visitar contos antigos às vezes é mais do que necessário, há uma certa urgência como uma planta que seca em um vaso pequeno, em um desespero silencioso por água. Percebeu então que a farpa que lhe atravessa a sola do pé e o faz mancar a cada vez que toca o chão significava não apenas uma farpa que dói. Significava que era preciso saber por onde se anda.

“A gente precisa saber onde ancorar” Ela disse em um de seus contos. Algo sobre seu pai e a relação tempestuosa que originou algumas de suas dores mais profundas. Parece que ao final do conto, ela encontrou o perdão que não procurava.

A ferramenta mais útil que dispunha para tentar encontrar o lugar onde jogar sua âncora era um candeeiro entregue por um homem muito velho e tão sábio quanto era antigo. A pequena e cintilante chama ilumina os caminhos que o coração deseja encontrar. Balançando de um lado para o outro enquanto caminha, ela mostra as bifurcações que existem por todos os lados – e as estradas possuem as mais variadas cores e o segredo é encontrar o caminho que tem a mesma cor que seu coração. Às vezes era difícil distinguir as cores que estavam diante dos olhos, uma vez que a chama não era forte o suficiente para evitar que as penumbras sugerissem a ilusão na dança das cores. O azul às vezes parecia verde, o roxo às vezes era preto e assim se seguia. “Só se vê bem com o coração”, lhe confidenciou certa vez o candeeiro.

Mas, antes dessas cores, antes dos caminhos, antes de qualquer significância a se atribuir ao destino (“O destino é uma vadia”, ouviu certa vez de uma alma amiga, em contraste mas sem controvérsia com a frase “O que o destino coloca à mesa eu como”, que outra alma amiga lhe confidenciou. Ria em concordar e formulava a sua própria frase “O destino é uma vadia que põe a mesa e nos faz comer”) ele sabia que de alguma forma há uma ligação entre todos os fatos, como um fino fio de prata que liga as pessoas e as situações – o que traduzia uma certeza especulativa de que se há um fio de prata, então somos todos ouro e nos manchamos ou reluzimos à medida que aceitamos aquilo que essa meretriz (que não se vende) chamada destino nos oferece. Ou nos obriga a comer.

E este fio, tão meticulosamente fiado, enrolado e cortado, não poderia deixar de ter suas próprias fiandeiras, seu próprio tear. Seres lúgubres que se sentavam ao redor de uma grande roda e a giravam sem um controle predeterminado, ainda que soubessem que não deixariam em momento algum a roda sair de seu próprio eixo.

Talhado na roda, está escrito: Regnabo a leste, Regno ao norte, Regnavi a oeste, Sum Sine Regno ao sul. Sabia que seu momento era o sul, era aquele que estava sem reino - mergulhado nas sombras da noite a observar a lua em uma de suas belas evoluções pelo céu. “Uma superlua”, refletiu. As marcações na Roda representam a jornada do Sol, portanto uma lua de tal magnitude em um momento tão mergulhado em sombras só poderia significar a obviedade das situações indesejadas. Se haveria de ser dessa forma, então que fosse. Afinal, o destino é uma vadia que põe a mesa e nos obriga a comer.

Mas o candeeiro balançou, e no seu vai e vem ele pode ler as letras douradas do leste.

Regnabo.

A Roda continua a girar, é por isso que tantos a chamam dessa forma. Pois mesmo que ela possa trazer sorte ou azar, temos uma única certeza: nada é para sempre.

Por isso, como iria descobrir, ela se chama:

Fortuna.


Apócrifo I - 3 de Espadas

Havia uma urgência em seu âmago. Uma chama que crepitava lentamente lhe consumindo as veias, artérias e o próprio sangue – uma queda lenta em direção a uma fogueira alta, que sem ao menos se aproximar, sentia o calor lhe esbofeteando o rosto (ou seria o coração?). Era falível, embora sempre estivesse altivo, ereto e duro como uma estátua de mármore, seria possível que as chamas que não podiam ser vistas e nem tocadas, conseguissem por fim determinar a deterioração de suas bases? Iria a estátua finalmente cair na direção da fogueira e por fim, dar-lhe um fim? 

Respirou profundamente, uma vã tentativa de suprimir a ardência que sentia, que aumentava à medida que inspirava, com o ar alimentando o fogo. Seria ele inspiração para algo ou alguém? Duvidava. As águas que corriam pelos pés e brincavam com seus dedos não eram da chuva, não naquela noite, não naquele momento – nem era água também. 

Arrumou sua postura, tentou fingir que não havia um peso incomensurável sobre seus ombros, quando foi que permitiu tantas porcarias naquele espaço sagrado, que de sagrado não tinha nada – não por que não era, mas sim por que não recebia esse valor. Sentiu a fumaça lhe estufando os pulmões, aquela velha e barata tentativa de se manter a calma quando sente-se que o mundo ao redor estava ruindo. Que mundo? Se perguntava com um amargor nos lábios, provocado não pelo líquido incolor e inodoro que ingeria para amenizar a incandescência dentro de si (indiscutivelmente sem resultado). 

Decidiu caminhar ainda que os ossos das pernas refutassem a vontade de se andar sem rumo - a quem queria enganar? Alguns passos pelos corredores, pois sair daquele lugar implicaria em abrir mão da responsabilidade que possuía, mais um peso entre tantas outras porcarias. Voltou para o lugar que estava, onde as ervas daninhas sobem pela cadeira e amarram seus braços e pernas, sem contudo, qualquer tentativa de se livrar delas. Sabia que vez ou outra abria-se uma flor perto de seu rosto, a qual ele olhava com um certo respeito, tentando ver beleza na planta antes que ela espirrasse algum tipo de tóxico em seus olhos ou em suas narinas. 

Desistiu, o que se pode fazer contra aquilo que não há força para enfrentar? Se não há resolução, resolvido está. E foi então que sentiu a ardência passar, a água sob seus pés secar, e a planta afrouxar. Até as várias flores nocivas perderam sua força, morrendo instantaneamente, na velocidade de um suspiro. Relaxar a mente e o espírito, ouviu-se dizendo enquanto procurava pela sombra da confiança que tentava exalar para si mesmo. 

Pandora abriu a caixa e dentre tantas as tristezas que espalhara pelo mundo, a pior talvez, fosse a esperança.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

O Eremita (Ou Carta IX)

Subiu a montanha sentindo os flocos de neve caindo levemente no seu rosto. Era primavera, mas tão perto do pico da montanha, sempre havia neve. Quase um lembrete não escrito a respeito da necessidade de se retirar e refletir. Estava para se encontrar com um velho conhecido que de tempos em tempos surge para lhe dar a mão, balançar sua lanterna de um lado para o outro e em alguns momentos, lhe emprestar o cajado.

Para a árdua tarefa que era subir a montanha caminhando pelas trilhas íngremes, jogou sobre si um manto que não permitia o frio lhe cortar a pele; pegou um galho de árvore para que servisse de apoio enquanto subia; botas de pelo de carneiro para ter certeza que os pés não ficassem dormentes. Preparação é sempre a palavra chave quando se tratava em se encontrar com o velho.

À medida que subia lamentou-se por ter de fazer isso justo agora, quando preferia os jardins floridos e o sol quente do vale. “Deve ter algum motivo muito especial para esse encontro”, pensou. Um passo em falso e quase caiu no desfiladeiro, mas por sorte carregava um livro grande e pesado às costas, que lhe fez contrapeso e assim desabou sentado na trilha. Usou o galho como apoio e se levantou. Ainda caminharia mais um pouco e passos em falso fazem parte da situação quando se pretende chegar em algum lugar.

Fez a última curva aliviado e encontrou a caverna do velho, onde viu a luz de uma fogueira lambendo as paredes rochosas. Entrou e ali viu seu velho amigo sentado segurando uma vara com algum tipo de fruto na ponta, sob o fogo.

- Como tem passado? – Lhe perguntou o homem sem levantar os olhos, mas sorrindo daquele jeito banguela que irradia uma felicidade contagiante, e fez com que o rapaz não se lamentasse mais por estar no alto de uma montanha gelada, enquanto as flores desabrocham no vale.

- Bem, apesar de alguns obstáculos. – Lhe respondeu enquanto tirava o manto úmido das costas.

- Temperança, Sacerdotisa hein?

- Ah... bem, sim. E ainda ganhei um livro!

- Ganhou. Mas sempre foi seu. Mas é esse o sentimento quando não sabemos que temos algo e de repente, plim, aparece.

Aproximou as mãos do fogo para se aquecer, enquanto o velho tirava a vara com o fruto do fogo.

- Recebeu meu chamado a contragosto não é?

- Caminhamos tanto tempo lado a lado que ás vezes sinto saudade, mas você sabe, o caminho do Eremita é entender que tudo é aprendizado.

- Você parece ter entendido muito bem.

- Venho me esforçando para isso.

O velho sorriu banguela. Era verdade que o rapaz sempre se esforçava para entender as situações pelas quais ele próprio passava, mesmo que inicialmente tudo fosse confuso, sabia muito bem que era questão de tempo e de se distanciar da questão para conseguir vislumbrar o todo e assim galgar pouco a pouco o crescimento.

- Não há muito o que eu possa fazer por você agora.

- O que quer dizer?

- Estamos nos despedindo.

- Você não pode me deixar... quero dizer... preciso me encontrar com você de tempos em tempos, conversar e tentar entender as coisas.

O velho se levantou e foi para o fundo da caverna, onde acendeu o que parecia ser um candeeiro e quando virou-se, o rapaz viu um homem alto, de barba longa e branca, com um manto que parecia ser um céu estrelado que se expandia por todo o fundo da caverna, na sua mão direita um cajado de carvalho entalhado com imagens de azevinho.

Um vento gelado soprou pela entrada da caverna, fazendo a fogueira quase se apagar e assim que ela se restabeleceu o rapaz viu o homem banguela na sua frente novamente.

- Para você. – Lhe estendeu o candeeiro feito de prata. – A partir de agora você pode encontrar seu próprio caminho sem que exista minha influência. Quando precisar, feche os olhos e mantenha a mente calma, focada nas estrelas e na luz que há em você. Estaremos juntos de qualquer forma, mas é tempo de saber que você é também seu próprio Eremita.

Agradeceu sem saber o que falar.

- Agora parta.

O rapaz se levantou e foi para a saída da caverna, com a certeza de que aquele momento não era um adeus, mas um até logo.


segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Oração nº 4 - 3 de Espadas ........................................ (A Sacerdotisa – Final)



“Como parte do ritual (que aqui significa cerimônia), lembro-lhe caro leitor, que esta não é uma história feliz. Novamente nosso protagonista parte em busca de algo e novamente encontra uma situação adversa à que desejava. Talvez entre todos os dissabores com os quais ele venha se acostumando, esse seja um dos menores deles.”

- Se fosse um dos menores ele não se lembraria até hoje. – Disse o andrógino.

- O tempo que demoramos para esquecer é o que define se algo é grande ou não?

- De forma alguma. Mas a questão primordial nessa discussão é: você acha que é algo pequeno ou você tem certeza?

Deu às costas para o homem e observou o título no alto da página

Uma história sem grande importância.

Refletiu sobre as palavras ditas pelo homem sentado na grande cadeira de prata. Riscou o título e o reescreveu embaixo:

Uma história sem grande importância.

“A importância que damos para as coisas.

Era uma noite quente de primavera e como havia trabalhado muito durante a semana, decidiu que seria por bem que iria para uma festa ao sábado. ‘Por bem’ nesse caso, quer dizer que possivelmente lhe faria algum bem e deixaria a cabeça mais leve ir para alguma festa e beber um pouco. Em ambos os casos, sair para uma festa e beber um pouco, se tratavam apenas de uma conjectura falsa, já que mais tarde iria descobrir que nenhuma das duas coisas iriam de fato lhe fazer bem.

Encontrou com seu amigo para comprarem uma garrafa de vinho e se sentarem em uma avenida próxima, que aos sábados tinha grande movimentação de menores de idade bêbados, alguns assaltantes, carros em velocidades altas e algumas barraquinhas de comida duvidosa. Mas o local onde gostavam de ficar conversando era próximo a um rio e ele gostava de ver as luzes da cidade refletidas naquelas águas escuras e então, como qualquer jovem incauto, achava que nada poderia acontecer de ruim. Ele estava certo sobre não acontecer ali.

Beberam, conversaram e se divertiram. A noite havia se tornado fresca e ele estava se sentindo tão bem que pensou que nada de ruim poderia acontecer, quem sabe até conheceria alguém naquela noite. Ele não sabia contudo, que essa era a parte ruim.

Caminharam pela avenida sob árvores que floresciam à medida que os dias da primavera se estabeleciam, a lua cheia brilhava alta no céu. Entraram em uma rua sem saída e procuraram algum lugar para se sentarem à espera do momento em que as portas da festa se abririam, ficaram observando os carros chegando e outras pessoas que estavam sem veículos motorizados. Viu um garoto chegando, não mais velho que ele, com cabelos lisos na altura dos ombros e bem magro – parecia chamar atenção das outras pessoas que viravam a cabeça para olhá-lo. Nosso protagonista parou para tentar se lembrar se já o tinha visto em algum lugar e concluiu que não.

- Como é bonito. – comentou seu amigo com um olhar estranho, como se pudesse atacar o rapaz.

- Ah... bem... parece um pouco bonito mas não sei... tem algo...

Mais um de nossos momentos sublimes nos quais a intuição se sobrepõe ao racional mas como todo péssimo protagonista, ele decide não ouvir a voz em sua cabeça. Talvez também houvesse uma ação do destino (que aqui significa acreditar que as coisas acontecem e são por uma vontade superior à nossa).

De qualquer maneira, sua frase foi interrompida pela abertura das portas e a aglutinação das pessoas que desejavam entrar ali. Pegou a fila também e continuou a conversa animada com seu amigo que possuía tiques escandalosos e por muitas vezes lhe fazia sentir vergonha.

Entraram no ambiente escuro, mas já muito bem conhecido. Viu alguns rostos conhecidos e caminhou entre as pessoas para chegar no caixa e pegar algumas fichas de cerveja. Passou pela pista de dança para que chegar ao bar e no caminho cumprimentou mais algumas pessoas. 

Encostou-se no balcão distraído, quando veio uma voz do lado esquerdo.

- Oi, está sozinho?

Olhou para o lado e se espantou com o rapaz de cabelos lisos até o ombro, encostado no bar e atrapalhando que outras pessoas pegassem sua bebida.

- Er... oi... estou com um amigo.

- Ah, um amigo, me desculpe.

- Como assim?

- Achei que estava sozinho.

- Não estou com alguém, sabe, no sentido de estar com alguém.

Ficou olhando com uma cara confusa para nosso protagonista.

- Não estou ficando ou namorando ninguém. – Completou julgando que era essa informação que o outro queria.

- Legal...

E começaram a conversar enquanto bebiam cerveja e atrapalhavam outras pessoas de buscarem suas bebidas. Em algum momento com as luzes piscando e o lugar se tornando abafado à medida que mais pessoas chegavam, beijaram-se.

***

Saíram mais algumas vezes e por volta da terceira semana, conversando todos os dias e se descobrindo, decidiram que poderiam iniciar um namoro que nesse caso não tinha um significado especial para o nosso protagonista, que entendia essa relação como sendo algo tranquilo que poderia balancear entre o trabalho, a faculdade e o momento que teria para estar com ele e com os amigos.

Os dias se desenrolaram com o rapaz exigindo cada vez mais presença e com histórias cada vez mais estranhas, como quando ele estava andando sozinho pela rua à noite e foi abordado por um homem que desejava conhece-lo melhor. Justificou a abordagem do homem (não que precisasse pois não foi questionado de nada) como sendo culpa de uma magia feita para ele, em que as pessoas sempre sentiam atração sexual.

- Magia para sentir atração sexual por você? Interessante, como foi feito?

- Não posso contar.

- Tá, mas você não me traiu não né?

- Claro que não.

Embora acreditasse no rapaz, sabia que naquele dia ele havia chegado cerca de uma hora mais tarde em sua casa.

***

Saiu no horário costumeiro para ir encontrar com o namorado. Aos sábados trabalhava até próximo do meio-dia, então pegava dois ônibus e ficava sem almoço para estar com ele o maior tempo possível. Aquela era a terceira semana que mesmo estando um pouco zonzo pela fome, recebeu a reclamação de que havia demorado muito. O rapaz de cabelos lisos até o ombro chegou a ameaçar de não se ficarem juntos naquele dia, no momento em que nosso protagonista desceu no ponto de encontro.

As brigas se tornaram cada vez mais comuns e os motivos cada vez mais estúpidos. Ele estava se cansando por se sentir cobrado demais e não atender às expectativas.
Mas quando estavam juntos se sentia preenchido e feliz. Sabia que o outro gostava dele e o quanto gostava.

Mas, essa história não tem um final feliz e você ainda pode ir para outra postagem, como talvez o Mago que fala sobre inteligência e esperteza, ou o Imperador que fala sobre uma mulher e uma fotografia.

Mas o caso é que tiveram uma conversa muito séria em uma sexta-feira quente de verão. O nosso herói ficou com o coração na mão quando lhe disse que o término era a única opção. O rapaz de cabelos lisos até o ombro lhe disse que não acreditava nisso e que o nosso protagonista precisava melhor, precisava se tornar outra pessoa. Nosso herói negou.
Saiu daquele local com o rapaz ao seu encalço, aguardou o ônibus enquanto o outro chorava e pedia para que ele não fosse.

***

- Não consigo continuar. Me sinto como se tivesse causado tanta dor para ele.

- Continue.

- Não posso, eu fui tão... péssimo com ele.

- Existem coisas que você precisa entender. – Disse-lhe a Sacerdotisa com um olhar meigo.

***

Terminaram, e então o revés atingiu nosso protagonista em cheio, que ficou se sentindo mal pelo resto da semana e não conseguia se imaginar com nenhuma outra pessoa. Não sabia exatamente o que sentia por ele mas parecia que a forma certa de se gostar de alguém era a forma como o rapaz de cabelos lisos até os ombros havia feito.

Preocupado com nosso herói, o seu amigo o chamou para ir novamente para a boate onde tudo havia começado. Poderiam beber e se divertir.

Repetiram os mesmos passos relatados no começo do conto e foram para lá.

Como em toda Desventura na qual aquilo que tem para dar errado provavelmente dará, o rapaz de cabelos lisos até o ombro também estava ali e quando se encontraram lágrimas rolaram e nosso protagonista se sentiu a pior pessoa do mundo, não acreditava que estava fazendo isso com o rapaz.

Não acreditava.

Assim como não acreditou quando, depois de uma semana, o rapaz de cabelos lisos até o ombro estava passeando pelo centro da cidade de mãos dadas com outro rapaz (este não possuía nem os cabelos lisos, nem até o ombro). Se cumprimentaram e foram apresentados. O rapaz que não possuía os cabelos lisos e nem até o ombro foi até a banca de jornal pois estava com pressa e o rapaz de cabelos lisos até o ombro disse para o nosso herói:

- Finalmente achei alguém que amo de verdade.

***

Pousou a caneta ao lado do livro.

- Interessante não é mesmo?

- Não sei o que dizer.

- Era real?

- Por que não seria?

- Por que seria?

- Por que as coisas possuem o peso que damos para elas.

Ficou olhando para o livro de páginas em branco. Estava cansado e decidiu por fechá-lo e quando olhou para a capa, percebeu que o nome estava diferente.

Desventuras em Série

Livro do Espelho

- O nome... – Olhou para o andrógino.

- Está um pouco diferente.

- Espero que tenha sido proveitosa sua estada.

- Sentirei sua falta.

- Basta escrever e estarei com você.


Levantou-se e deu um abraço forte no homem. Virou-se e caminhou em direção à saída do templo.


The young man stepped into the hall of mirrors
Where he discovered a reflection of himself
Even the greatest stars
Discover themselves in the lookingglass
Even the greatest stars
Discover themselves in the lookingglass
Sometimes he saw his real face
And sometimes a stranger at his place
Even the greatest stars
Find their face in the looking glass
Even the greatest stars
Find their face in the looking glass
He fell in love with the image of himself
And suddenly the picture was distorted
The Hall of Morrirs, Kraftwerk

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Oração nº 3 - 7 de Espadas ........................................ (A Sacerdotisa – Parte 2)



“Leonard era um grande mentiroso, que falava o que precisava para conseguir aquilo que desejava. Até mesmo se aproximou de uma pessoa e espalhou boatos sobre ela para colocar seu namorado em um sentimento ruim e se afastar de sua amiga. Uma péssima pessoa”

- É assim que você começa e termina um primeiro capítulo?

- Não tenho muito o que falar sobre ele.

Ele cerrou os olhos em sinal de desaprovação e permaneceu parado como uma estátua à espera de uma mudança na fala do homem que deveria iniciar o Capítulo Um Mau Começo.

- Ok... – Deu às costas e voltou-se para o livro em branco.





Um Mau Começo

“Se você procura por uma história com final feliz, essa postagem com toda certeza não é para você. Mas se você procura um conto sobre mentiras escandalosas, torta de limão e um livro roubado, possivelmente essa é a história que você procura. Mas se ainda deseja manter alguma esperança em seu coração, pode pular para alguma outra postagem que fala sobre coisas mais felizes, como um Sol que aquece ou um Carro que avança com força.

Nosso herói inicia a jornada diante das boas intenções de uma conhecida sua, com quem por várias e várias vezes dançou e bebeu junto em uma boate.

- Tenho uma pessoa para te apresentar.

- Ele é bonito?

- Não, mas acho que é uma boa pessoa e vocês combinam.

É nesse momento que entendemos o significado da palavra intenção que nesse caso se remete a uma tentativa de realizar algo pelo outro, em específico nessa situação, algo bom. O mundo está repleto de intenções e de vontades, algumas boas e outras tantas ruins. O que define exatamente se é algo bom ou ruim depende basicamente da pessoa que teve a ideia. No caso, nosso herói acredita até hoje que a menina teve a melhor de todas as intenções, apesar do quão obtusas se tornaram as situações a partir do momento em que decidiu colocar uma roupa bonita, passar perfume e ir ao encontro do rapaz no shopping. Nesse ponto, é melhor que você pare com a leitura, a partir de agora as coisas irão ocorrer de forma tão desesperançosa que nem vale a pena.

O encontro foi interessante, apesar do homem alto e de aparência estranha ficar sempre se movendo, não conseguia permanecer com o corpo parado em nenhum momento. “Deve ser um pouco agitado”, pensou o garoto com toda a magnificência da inocência.

Após pedirem seus cafés, conversarem sobre como era a vida deles, decidiram ver algum filme no cinema e ao se levantar o rapaz alto disse:

- Esqueci minha carteira...

- Ah, tudo bem eu pago – E sorriu.

Senhoras e senhores. Quando esse tipo de constrangimento acontece, você não sabe exatamente onde enfiar a cara – essa expressão, acredito eu, vem de uma família de aves distante da família humana. Distante no sentido biológico, já que não há notícias sobre uma família de avestruzes que jantaram com uma família humana, portanto no sentido emocional e mental não podemos ter certeza da exata distancia que há entre nós e eles. A questão é que essa família de aves gosta de enfiar a cabeça em algum buraco pelo chão quando acontece algo ruim por perto (fonte de consulta: desenhos animados). O homem não trouxe a carteira e não aparentava estar constrangido com o fato, embora ele não fosse um avestruz, não parecia propenso em abrir um buraco no chão para se enterrar e nem enterrar a própria cabeça.

- Vamos para o cinema então. – E saiu caminhando na frente, seguido pelo nosso jovem herói.

Assistiram o filme, se divertiram e até ficaram de mãos dadas. Nosso protagonista parecia feliz com a situação e aquele era seu primeiro encontro, quem sabe ele se transformaria no primeiro namorado? Nossas escolhas, às vezes, são cruéis conosco mesmo.

***

- O recheio ficou bom, como você fez?

- Leite condensado, limão e um ingrediente secreto. – Disse sem olhar para ela.

- Sei.

Quando o homem foi usar o banheiro, a melhor amiga de nosso protagonista abaixou o tom de voz e o chamou em um canto:

- Koi, ele é estranho.

- Como assim?

- Não sei, tem algo esquisito nele.

- Não gostou da torta de limão?

- Não gostei dele.

- Besteira.

Se empanturraram com o doce, e embora a garota estivesse sendo simpática, para o seu melhor amigo era visível o desconforto dela.

- Vamos embora. – Leonard propôs sem parecer uma proposta e sim uma imposição.

Se despediram e quando já estavam na rua, o falacioso homem lhe disse que gostaria que conhecesse uma pessoa especial para ele. O garoto aceitou feliz a possibilidade de se encontrar com mais uma pessoa enganada por ele um pessoa especial para ele.

Foram pelas ruas conversando sobre amenidades e sobre o trabalho do homem alto e eis que aqui aparece mais uma possibilidade para fugir da armadilha que era essa relação. Nosso protagonista entretanto, apesar de sua inocência ser um grande dom, não usou de sua própria intuição e inteligência.

- Sua amiga não gosta tanto assim de você.

- Por que?

- Ela disse que você incomoda demais quando aparece lá.

- Ela não disse isso.

- Sim disse, falou que você vai muitas vezes e às vezes ela só quer sossego.

- Hum...

- Ficou chateado?

- Não.

- Por que?

- Ela jamais diria isso.

- Não acredita em mim? Acha que sou mentiroso?

- Não é isso. – E fez silêncio.

Era um apartamento que ficava na curva de uma rua larga, olhando debaixo para cima parecia uma dessas casas retiradas de algum livro de contos estranhos, sem nada de feliz. Mas ainda que obviamente devesse correr na direção oposta ao homem que estava ao seu lado, como se estivesse em uma maratona ou se sua vida dependesse disso, ficou ali e se  sentiu importante por conhecer uma pessoa especial para ele.

Era sua tia. Não se lembrava exatamente o nome dela, apenas que era uma senhora dada a se divertir em bingos, com várias amigas na mesma faixa de idade, solteiras e viúvas. Poderia facilmente se passar pela vovó da chapeuzinho vermelho, talvez bem mais moderna, mas ainda assim teria sido engolida pelo lobo – e foi.

O encontro foi excepcionalmente gostoso, com direito a café e bolo de fubá. Conversaram bastante e se sentiu acolhido quando a senhorinha contou a respeito de um amigo gay que tivera, que havia morado no mesmo prédio que ela e que saíram várias vezes -  uma ótima companhia. Mas como essa história não é nada feliz (e você leitor já foi avisado sobre isso), uma situação trágica acometeu o seu querido amigo. Havia morrido uns anos antes, vítima de um acidente de carro voltando de uma festa com seu namorado. O nosso herói se apiedou da senhora enquanto segurava a foto de um garoto que deveria ter a idade dele e decidiu que viria visita-la mais vezes para que não se sentisse tão sozinha.

Depois dessa conversa que tiveram sem Leonard, que saiu repentinamente para resolver algum assunto isento da verdade, foram para a cozinha comer mais bolo. Então ela começou a lhe contar da relação difícil que seu sobrinho tinha com os pais, envolvia brigas terríveis, expulsão de casa e falta de apoio dos irmãos dele. Ela acreditava que era pelo fato dele ser gay, mas não tinha tantas certezas sobre isso.

Leonard chegou esbaforido e com a boca vermelha, que dizia ele tinha coçado bastante alguns momentos antes de chegar no apartamento. Foram embora logo depois.

***

Nesse ponto da história é quando uma vozinha dentro da cabeça do nosso protagonista começa a dizer coisas a ele. Coisas boas, não confundir com algum tipo de esquizofrenia. Ele teve um momento para se salvar da rede de mentiras em que estava caindo mas como todo bom vilão, Leonard tinha uma carta na manga para segurá-lo.

Ao perceber que o garoto estava achando as histórias e situações cada vez mais estranhas e confusas, Leonard lhe confidenciou um imenso segredo, algo que envolvia risco de morte – que nesse caso o significado biológico é perfeitamente aplicável, como sendo interrupção definitiva da vida de um organismo – o vilão lhe disse que estava com leucemia.

Abraçaram-se e o garoto teve medo por perder o seu, então, namorado. Passou várias noites sem dormir direito e até acordou o outro durante a madrugada enquanto chorava triste. Até mesmo sua melhor amiga que já sentia o fedor de enxofre nas mentiras contadas ficou preocupada e permitiu que Leonard levasse um de seus queridos livros para ler entre um vômito e outro, enquanto estivesse em tratamento.

Bem, esse livro nunca mais retornou a ela e nosso protagonista teve de procurar e comprar outro livro que substituísse aquele. Ao contrário de Leonard, nosso jovem herói tem um forte senso sobre o que é certo e errado. Lhe faltava malandragem, que é aquela pessoa que vive através de recursos engenhosos para conquistar algo na vida.

Diante de tanto desespero, nosso herói decidiu fazer mais uma visita à casa da tia do nosso nada bem quisto vilão.

Quando entrou pela a senhora lhe deu um abraço apertado e o chamou até a cozinha para comer um pedaço de bolo de maçã e tomar um café.

- Filho, preciso te dizer uma coisa.

- Sim? – Ficou preocupado com a notícia que estava por vir.

- É tudo mentira.

- Tudo o que?

- O que o Leonard disse.

- Sobre...?

- Tudo. A irmã dele veio aqui e disse que não há nenhum problema na casa dele. Eles até dão dinheiro quando ele precisa muito.

- Isso é bom por que a doença dele...

- Doença?

- Sim, a leucemia...

- Ele disse isso?

- Sim, disse que vai viajar esse fim de semana para começar o tratamento.

- Sobre isso.. bem... você não é o único namorado dele...

- Como... assim...?

- Ele tem outro namorado, a família conhece e... eles... vão para o litoral no sábado.

Nosso destemido e inocente herói bebericou o café por que as palavras se engasgaram na sua garganta – o que significa nesse caso que era como se existisse uma bola do tamanho das que são utilizadas no jogo de tênis, entalada na sua garganta, embora fisicamente isso só poderia significar a morte, emocionalmente ou psicologicamente isso representava uma vontade indescritível de colocar para fora todos os sentimentos ruins, provavelmente através de choro.

Saiu do apartamento dela com o coração apertado, e quanto mais caminhava sentia que a senhorinha ficava cada vez menor até se tornar um borrão. Parecia que os caminhos que estavam por vir se revelariam tenebrosos – que aqui quer dizer “cheio de desgosto e sem sentido.”

Ao menos, não se viram mais. Exceto quando nosso vilão o chamou em uma rede social e obteve como resposta “Não me procure mais seu ladrão”. Obviamente nosso herói iria se tornar cada vez mais uma pessoa diferente, mas essa história fica para outro momento.”,



“Querida Sacerdotisa,

Espero que essas linhas estejam a seu contento e percebo agora que Leonard, o vilão que aparece nessa história desafortunada era na verdade, ele próprio um total desprovido de sorte e moral. Nada que nosso herói pudesse fazer iria mudar a situação pela qual passou e julgá-lo pela sua inocência diante do péssimo caráter de alguém 10 anos mais velho seria injusto.

Escrevo enquanto minha memória passa se recobrar de uma festa estranha em uma rua sem saída, uma conversa sobre magia de atração e tontura por falta de almoço.

Com amor,

XXX”



A Sacerdotisa (Ou Carta II) - Parte 1




Via a si mesmo refletido no chão meticulosamente limpo, andava sem ter certeza se deveria entrar naquele templo, naquele momento. As prateleiras se erguiam imponentes ao seu redor e a vista não conseguia ver a altura máxima que elas atingiam, o teto escuro lhe lembrava o céu noturno, enquanto que as fileiras intermináveis de livros desapareciam nas sombras ao alto. O piso quadriculado, branco e preto, o fez querer pisar apenas em uma das cores, como quando era criança e se divertia proibindo-se de pisar em algum determinado elemento que se repetia enquanto andava (pisar apenas no branco quando atravessava a rua em uma faixa de pedestres, por exemplo). 

Aproximou-se de um portal, em cada lado uma pilastra que se erguia para além da vista, também na dualidade das cores vistas nos pisos. Inscrito ao chão, na entrada do portal, uma bela imagem da lua, mostrando as suas fases e disposta na forma de um arco. Respirou fundo e deu outro passo, entrando no templo. 

O local possuía tantas prateleiras quanto havia no ambiente interior, mas ali eram dispostas em forma circular e no centro, sentado sob uma cadeira alta feita de prata, um homem (ou talvez fosse mulher, não teve certeza) com vestes vitorianas, em tons de azul (do mais claro ao mais escuro). Sua androginia fascinava, a pele clara quase perolada fazia perfeita combinação com os olhos claros rosados e os cabelos prateados. Uma postura impecável transparecia a timidez de quem prefere se voltar para si do que para o outro. 

Quando o viu se aproximando, disse em voz alta e limpa: 

- A 17ª carta. Esse é o lugar reservado a mim? – Seu olhar sereno revelava mais uma curiosidade do que estar ofendido pela posição dedicada a ele. 

- Bem... é o momento que sinto que deveria encontrar com você. 

- Pois bem... - Levantou-se da cadeira e foi até uma das estantes, apanhou um livro com uma capa desgastada e colocou sobre uma mesa de mogno que não estava ali antes. - Seja bem-vindo. 

Indicou com as duas mãos uma cadeira do mesmo material que a mesa, que também se materializou em instantes. O homem sentou-se e olhou para a capa em estado lastimável. 

Desventuras em Série 

- Eu gosto desse livro... mas a série é grande e não queria me demorar muito aqui. 

- São muitos livros não é mesmo? 

- Muitos.

- Esse autor não deveria escrever tanto não acha? 

- Ele escreve bem, gosto como conta as histórias alertando que são tristes mas não sentimos o peso que ele diz ter. - Ele deixa as coisas leves. 

-Sim. 

- Então... posso ler apenas o primeiro livro e tentar descobrir o que preciso e partir? 

- Claro que sim. 

Sorriu pela resposta e abriu o livro que se encontrava em branco. Folheou em busca de alguma coisa escrita e não encontrou nada, voltou para a capa e olhou melhor. Estava seu nome no lugar do nome do autor. 

- Mas o que... 

- Era assim que se chamava não é? Desventuras em Série. Era um blog interessante, um pouco desnecessário, mas uma coisa não exime a outra. 

- Não entendo... 

- Seja bem-vindo ao templo da Sacerdotisa. Aqui se guarda tudo aquilo que necessitamos para seguirmos em frente. No amor, na experiência e em toda nossa vida. A ponte do passado de onde viemos, na qual só se passa pela sua guarita aqueles que são capazes de criá-la em seus corações.

Olhou para o livro em branco. 

- Está em branco pois me parece que você não quis carregar algumas coisas que lhe pesavam demais. Do que abriu mão? 

- Muitas coisas. 

- O que ganhou em troca?

- Uma forte intuição. 

- É esse o nome que você dá para a tentativa de observar um padrão que, embora não se repita, você acredita fielmente que acontece em ciclos e que não há nada que possa ser feito? 

- Prefiro ir embora. - Levantou-se e deu alguns passos em direção à porta.

- Você reclama da Temperança mas nem ao menos deixa que ela faça o trabalho dela lá fora. Vamos lá, você não tem mais nada a fazer mesmo. Sente-se, pegue um café e escreva. 

Virou-se para o ser andrógino, meio preocupado em revirar as memórias em busca de algo que nem ao menos sabia o que era. Sentou-se novamente e pegou o café que, assim como as outras coisas, se materializou. 

- Por onde começo? 

- Pelo começo. 

Suspirou. Escreveu no alto da primeira página em branco: 

Um mau começo.




terça-feira, 4 de outubro de 2016

Oração nº 2 - Quando não vemos a 4ª Taça se enchendo


Amei te ver.



Tocou novamente Eduardo e Mônica. Revirou os olhos e tirou os fones de ouvido, mudou de posição na cama. Queria dormir nem que fosse para ter um pesadelo, muito embora não tivesse percebido que ao colocar aquela música no celular estava praticamente chamando por algum tormento, uma memória mal resolvida que vem à tona, às vezes como algo bom que aquece o coração, às vezes o efeito é inverso.

Puxou as cobertas e colocou o travesseiro sob os olhos. Não demorou e adormeceu.

***

Sinto sua falta.

Dizia a mensagem.

Podemos nos ver?

Veio logo em seguida.

Mentalmente respondeu que “não”. Escreveu qualquer coisa sobre estar disponível em algum dia da semana.

Então semana que vem nos vemos.

Talvez. 

Respondeu mentalmente de novo, mas dessa vez não deu a devolutiva.

Pensou sobre todas as situações enfrentadas e naqueles quase 2 anos de um vai e vem sem trégua. Sentiu-se cansado por ter passado por isso e com uma preguiça sem tamanho para permitir um novo encontro. Talvez.

O cotidiano lhe tomou a atenção e não se lembrou das trocas de mensagens com o velho conhecido. Ficou feliz com algumas soluções encontradas no trabalho e radiante com algumas possibilidades que se descortinaram e se esqueceu de comentar com a amiga sobre a procura de supetão e a conversa como aconteceu. Talvez.

Saiu com alguns colegas para se divertir e saciar a fome de terem tantas coisas em comum mas a relação estar fadada ao ambiente de trabalho. Riram e se alimentaram de pizza e de uns dos outros – como uma saudade não dita, mas latente, sem memorandos, ofícios, comunicados e reuniões. Foram embora com o sentimento de que deveriam provocar mais momentos como esse e quem sabe alugar algum lugar para passarem um fim de semana juntos, fazendo churrasco e bebendo. Talvez.

Recebeu um convite para dar uma escapada do trabalho. Ir para uma outra cidade acompanhar o amigo que iria fazer uma consulta médica e caso sobrasse tempo, dar umas voltas no shopping. Conversaram sobre vários assuntos no caminho, bebericavam um no outro como uma abelha que se aproxima de uma flor. A amizade iria desabrochar em breve e se tornariam bons companheiros. Talvez.

***

Estou na cidade.

Chegou bem?

Sim, cansativo, mas bem.

Que bom.

Nos vemos na sexta-feira?

Uma mulher havia descoberto a traição de seu marido. Um casal apaixonado se rendia à paixão avassaladora que geraria uma criança depois de 9 meses. Uma menina mostrou o dente de leite que tinha acabado de cair. Um adolescente começou um canal na internet e depois de 3 anos iria se tornar muito famoso. Um homem tropeçou na rua e caiu em uma poça d’água. Uma moça conseguiu uma entrevista de emprego depois de 2 anos sem trabalhar. Uma criança caiu do berço quando tentava escalar e estava aos berros esperando pelo socorro dos pais. Uma mulher escolhia o vestido que usaria na sua formatura em medicina.

Ele demorou 20 minutos para responder aquela mensagem e não tinha ideia da quantidade de coisas que haviam acontecido pelo mundo enquanto estava ali, parado com o celular na mão refletindo sobre o que falar (ou escrever) e ainda assim, só conseguiu ser sincero na sua própria cabeça.

Mas respondeu que “sim”.

***

Talvez.

- Vamos para um bar? – Perguntou seu amigo

- Vamos, deixa eu ver se a Beatriz vai. – pegou o celular e ao procurar pelo contato dela, recebeu uma mensagem:

Oi?

Passou rapidamente pelos contatos e ligou para ela que aceitou, desde que esperassem se arrumar. Foram até a casa dela enquanto olhavam para a lua que minguava, conversavam amenidades e cantavam Eduardo e Mônica que tocava na rádio.

- Nessa parte, “a Mônica de moto e o Eduardo de camelo”, você sabe o que significa camelo?

- Olha, nunca ouvi essa expressão, mas pelo contexto é bicicleta?

- A maioria das pessoas que pergunto isso não sabem o que responder, acham que ele só queria uma palavra que pudesse rimar.

- Renato Russo jamais faria isso.

- Nem todo mundo conhece.

- Não, nem todo mundo conhece.

Saíram os três e voltaram pela madrugada. Foi divertido. Um pouco divertido. Talvez.

***

Me esqueci, desculpa.

Talvez

Tudo bem, final do mês eu volto.

Talvez

Entendi

Talvez

Podemos nos ver?

Talvez

Sim

Talvez

Me lembrei de uma coisa

Talvez

O que?

Talvez

Uma música que você me mandou e achei fofa

Talvez

Qual?

Talvez

Amei te ver, do Tiago Iorc

...

...


Sim.


segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A Temperança (ou Carta XIV)




- Neblina... todos os dias ao anoitecer.

- E o que você acha disso?

- Não sei dizer... céu azul e sol o dia todo. Anoitece, neblina.

- Há um equilíbrio então.

- Não sei... na noite já temos uma visão reduzida e enxergamos pouco o que está à frente. Podemos tropeçar. Com neblina então, as coisas tendem a piorar.

- Você precisa avançar no escuro e na neblina?

- Não. Mas e o sol durante o dia, não há nenhuma nuvem e ele brilha tão forte e quente. Chega a ser gostoso sentir tocando na pele.

- Então avance sob o sol.

- Por que não pode ser um avanço completo?

- Você consegue essa completude dentro de você?

- Eu... não...

- Aproveite o momento então, e aprenda.

***

Bebericou levemente o café quente enquanto observava o novo dia chegando. Sol novamente e céu azul, mas sabia que naquela noite iria vir a neblina. Acendeu um cigarro, às vezes quando faltam palavras a fumaça preenche o vazio que existe ali. Cigarros são poemas mal cheirosos.

Foi até o pessegueiro e viu duas flores próximas, com algumas folhas ao seu redor impedindo uma vista clara. Arrancou as folhas e pegou o celular para tirar uma foto - com o céu azul ao fundo, folhagem verde e as duas pequenas flores cor-de-rosa, ficou parecendo um quadro do florescer da primavera, e já era primavera. Se perguntou se elas se tornariam pêssegos.

Sentiu uma leve brisa que tocou o seu rosto, fechou os olhos e viu diante de si uma bela mulher com asas de anjo, em sua mão direita, um cálice dourado e na esquerda, um prateado. Os antigos reservavam um nome especial para ela, que representava a união dos céus com a terra, em uma aliança forjada na bondade e no afeto. Viu a mulher despejar a água de um cálice para o outro, com um rosto sempre sereno. Por algum tempo pensava na Temperança como uma carta desmotivadora – esperar, era o que sempre ouvia.

Íris estava ali não para avisar sobre a espera. Não iria pedir para que ele ficasse em silêncio aguardando a ação do tempo (que muitas vezes simplesmente não age) ou a ação de terceiros. Havia passado pelo Enforcado com grande dificuldade, um empurrão feito pelo Carro para que encontrasse o caminho certo e diante de si, com as asas tão belas, a deusa estava a lhe mostrar o que significava a Temperança e por que foi conduzido até ali (sem saber se por ele mesmo ou por obra do destino).

Sentiu-se Iluminado e calmo.


A água passava de um cálice para o outro enquanto ela olhava serenamente para ele.



domingo, 25 de setembro de 2016

O Carro (ou Carta VII)

Brilha brilha farolzinho
Mostra o que vem à frente
Acende o vermelho para o que está atrás
Passe a lombada,
Desvie do buraco,
Vamos em frente meu amor.



***

Construíram uma estátua em homenagem aos dois. Estavam com mãos dadas como se fossem girar, aos pés dois gatos: um preto e branco e outro amarelo e branco. Mas olhando dali eram cinzas, os quatro. Cores que fazem toda diferença, ainda mais quando você prefere o mundo bem mais colorido, sem tons pastéis e essas cores meio apagadas. Tons vivos, de vermelho sangue, azul céu (sem nuvens), amarelo ouro, verde grama após a chuva (sabe quando sai o sol logo após uma pancada feia de chuva? Sabe a grama? Essa cor).

Todos os dias a população passava por ali, não olhavam os pombos a pousar e sujar a estátua. Não viam as cores que ela sempre teve, não percebiam as cores do amor dos dois.

Não sabiam da música que um dia poderiam gostar, não sabiam da comida predileta que poderiam fazer um para o outro, não sabiam do amor que poderiam ter com os gatos, não sabiam de nenhuma penteadeira, não sabiam de nada. Talvez nem se importassem. Não tem como você se importar com aquilo que você não conhece e eles... bem... aquelas pessoas nem se importavam em conhecer.

Mas não fazia tanta diferença assim, saberem ou não saberem.

Exceto talvez nos dias que aquela pessoa aparecia na praça segurando um buquê de rosas vermelhas e as colocava sob o pé da estátua. Era meio estranho e todos olhavam enquanto caminhavam rapidamente para não perderem tempo, sem saber exatamente, que quanto mais rápido caminhavam e pelo motivo que caminhavam, mais tempo perdiam. Mas como dizem, tempo é dinheiro. E se envolvem dinheiro no meio... o resto você já sabe.

Mas um dia a estátua demonstrou sinais de que já não aguentaria ficar ali por muito tempo. Já haviam roubado o gato branco e amarelo (me desculpe o deslize, por favor leia as últimas duas cores como sendo: cinza), a cabeça de um deles tinha despencado em algum momento (e as pessoas apressadas com seus inadiáveis compromissos não saberiam dizer em qual momento foi) e a outra cabeça estava tão deformada, que já nem poderia refletir a beleza que teve quando era mais... qual a palavra para uma estátua jovem? Nova?

E o homem que ali depositava rosas também deixou de aparecer. Estaria tão preocupado com seus afazeres que não retornava mais ao local? Talvez. Não se tem muita certeza quando ninguém percebe nada, ainda mais aquelas pessoas tão apressadas e tão cercadas de problemas a resolver. O Pequeno Príncipe teria questionado por que elas estavam tão apressadas que não olhavam e não cuidavam de uma estátua com uma representação tão bonita.

Mas ele nem ele e nem a atenção das pessoas estava ali.

***

Fechou o livro sem gostar muito daquele final. Preferia histórias felizes, não histórias nas quais as coisas nem ao menos acontecem, era expectativa demais para se terminar com duas estátuas. O que o autor estava querendo com isso? Que coisa mais chata, desnecessária.

Foi colocar o livro no criado mudo ao lado da cama e sem querer o deixou cair. Quicou no chão e caiu com as últimas páginas abertas e escrito em letras grandes, estava ali “Epílogo”. Pegou o livro novamente e foi direto para as três últimas páginas e percebeu que o livro não se encerrava como parecia. Quer dizer, se encerrava ali aquela história. Ficou contente em saber que teria mais, ainda que uma história diferente julgando pela forma como o epílogo estava escrito, teve esperanças que haveria um final menos xoxo. Correria na livraria pela manhã e tentaria encontrar a continuação, sorriu com a esperança de se ter uma nova e mais empolgante história, ou pelo menos com o mesmo ritmo que o livro que acabou de ler, mas com um final digno de filmes hollywoodianos. Não estátuas paradas no tempo. O que o autor tinha na cabeça?

Pela manhã resolveu esperar no café do outro lado da rua onde estava a livraria. Deixou que abrissem enquanto bebericava a xícara e observou uma garota de cabelo castanhos escuros e roupas de ginástica olhando as vitrines da loja, obviamente em busca de algo que quisesse ler. Ou dar de presente a alguém. Será que tinha namorado? Decidiu pagar a conta e quando saiu do café ela já não estava mais à vista.

Ao entrar na livraria foi direto para o atendente e perguntou sobre o livro que era continuação do anterior e em um lapso, se esqueceu do nome dos dois livros – do velho e do novo. Enquanto abria sua bolsa estilo carteiro em busca do livro antigo, a garota surgiu do meio das estantes agradecendo a outro atendente e com o livro que ele desejava nas mãos, foi para o caixa.

- Aquele livro, estou procurando por ele.

- Ah sim, tivemos uma boa venda ... é o último exemplar. Há previsão de chegada de mais exemplares em duas semanas.

Sem pensar muito e decidido a contornar a situação, o rapaz foi até a moça que estava quase na boca do caixa.

- Quanto você quer no livro?

- Oi?

- Quanto você quer? Eu pago. Se quiser o dobro do valor eu te dou.

- Não está à venda. – Um sorriso sem graça.

- Realmente quero muito esse livro... – Fez cara de cachorro que cai da mudança. Ela riu e achou ele bem esquisito. Esquisito demais, afinal por que não procurava em outra livraria? Mas aquilo era bem diferente, uma situação única. Talvez se conhecesse ele melhor teria ótimas histórias para contar aos amigos. O cara que queria a todo custo um livro. Que viagem.

- Paga metade, eu levo e leio. Combinamos por mensagens um café ou algo do tipo e eu te entrego e te conto o final. Prometo ler em três dias.

- Vai me contar o final? – Disse meio confuso.

- Claro que não – Riu da inocência dele – Estou brincando!

- Pagar metade, pegar seu número e marcar um café. – Disse desconfiado. Ela era meio estranha e essa proposta mais ainda.

- E depois de você ler, você doa para alguma biblioteca. Os dois pagam metade ninguém fica com ele. Me parece justo. – Estendeu a mão para ele.

- Aceito!

***

“O que está achando do livro?” – Tomou coragem para mandar uma mensagem.

”Mais ou menos, prefiro mais aventura, fantasia”

“Como assim?”

“Gosto de livros que contam histórias com lugares distantes, feitiços, um príncipe disfarçado”

“Já ouvi algo assim”

“Talvez hahahahaha”

“Parece uma história que já existe”

“É sim, a parte mais bonita é quando se encontram no jardim, é um príncipe encantado e ela só descobre quem ele é quase no fim”

“Príncipes encantados. Você anda vendo muito Disney”

“Você que anda vendo de menos rs.”

“Talvez hahahahahaha”

“Bom, acabei ele hoje de tarde, um café amanhã pela manhã, em frente à livraria”

“Um café por favor!”

“Bem quente!”

***

 Após o café e uma conversa extremamente agradável, passaram pelo lugar favorito dos dois: a livraria, é claro. Por entre as estantes ela falava sobre os livros que havia lido e ele tentava dizer algo inteligente vez ou outra e ficou tranquilo ao ver que ela estava perdida por entre todos os livros que estava indicando para ele.

- Cidades de Papel. Não leia!

- Nossa, que ênfase. Motivo?

- Não tem um final lá muito feliz. Livros sem finais felizes deveriam ser banidos do mundo.

- Eu gosto de livros sem finais tão felizes assim, mostra o que a gente quer realmente. Tipo você, que não quer o que acontece naquele livro.

- Precisamos de finais nem tão felizes para saber quais são os felizes?

- Acho que sim.

- Então leia o livro – O pegou da prateleira e deu nas mãos dele.

- Hum... acho que não - E devolveu.

- Vamos? – Olhava as coisas ao redor com certa vivacidade, como se estivesse perto de embarcar em algo novo e muito excitante. Saiu da livraria.

Ele apressou o passo, sem ter muita certeza se conseguiria acompanhar aquela garota.

Mas...

No fundo...

Ele sabia que tentaria.

Ou melhor, conseguiria.